“Eu acho que a democracia precisa não apenas de representação, mas de produção de presença.” Entrevista a Marcus Faustini

Por: Courtney Martinez

Foto: Vania Laranjeiras

La corresponsal de TRANSAS en Rio de Janeiro, Courtney Martinez, entrevistó al escritor Marcus Faustini. Aquí nos habla sobre el proyecto estético y político de Guia Afetivo da Periferia y sus apuestas a una presentificación de la obra en la escena teatral. Marcus cuestiona los lugares desde los cuales se narró al “pobre” y cuenta que su propósito es hacer “un personaje pobre contemporáneo con memoria”. Superar el “boom da periferia” significa llevarlo del plano de las representaciones a la consolidación de producciones culturales e institucionales sobre una apuesta por el trabajo comunitario. 


O Guia Afetivo da Periferia é muito pessoal e, ao mesmo tempo, muito generoso. Generoso na maneira que o livro nos empresta um jeito para reconstruir o Rio, ver a cidade com olhos novos, descobrir suas possibilidades infinitas. Quais foram os motivos para escrever O Guia?

MF: São caixinhas de pensamentos diferentes. Primeiro, ele tem um projeto estético muito claro de tentar romper com uma tradição de narrar os pobres apenas como melodrama ou como pessoas que estão lutando pela sobrevivência. Eu queria demonstrar ali que a cabeça de um jovem pobre, urbano, pensa a cidade. É contemporâneo. Geralmente os pobres são narrados por folclore, melodrama, como operários, e de alguma maneira desprovidos de um discurso de subjetividade. Eu queria demonstrar que tinha um fluxo de pensamentos num personagem popular. Ele não é só dialógico, ele não está só lutando pela sobrevivência, ele não é um operário. O mundo já está dentro da periferia. A periferia não é outro do mundo. Tinha uma estratégia de escrita fragmentada, uma estratégia plástica de tentar criar procedimentos. Durante a escrita eu fiz inventários de todas as ruas que eu passei, mapas dos lugares onde senti certas coisas. Não escrevi como um romance. É proposital a voz que finge ser autoficção, justamente porque se os personagens pobres são tipos, e eu queria romper com os tipos, só colocando a vida como linguagem eu poderia romper com isso. Então tem um projeto estético e político de um lado. Isso era um pensamento muito claro. Por outro lado, tinha uma vontade enorme de tratar da memória, da memória pessoal, como a memória é um elemento importante para a escrita. Então tem um fluxo de memória ali. Generoso, sem mediação. Não é um relato. É uma estratégia para confundir. Será que é vida? Será que não é vida? Eu acho que isso cria uma tensão com o que se costuma ver do que vem de literatura chamada literatura de periferia ou sobre os pobres. A vida na periferia é uma vida muito maior do que só alegria ou violência. Tem subjetividades. A quem interessa narrar a periferia só como um lugar extraordinário, como o outro do mundo, eu queria demonstrar que tinha Chekhov, tinha pensamento. Então o guia foi uma estratégia estética de treinar possibilidades. Eu estava muito ligado à ideia de cinema de documentário de dispositivo e pensando como esse cinema de dispositivo poderia funcionar na literatura. Então, o dispositivo ali era ruas que passei, climas da cidade e como traduzir isso tudo.

O Guia é como uma montagem de cenas. Um filme feito com uma câmera na mão, como O Homem da Câmera de Dziga Vertov. Em 2016, você levou o livro ao teatro. Como foi a adaptação?

MF: Não foi adaptação. A gente colocou o texto do livro em cena. O que o teatro traz? O teatro traz a presença. Eu queria colocar o corpo daquele jovem em cena. Se no livro é o pensamento dele, ali a gente vê as decisões dele. Como ele tomava cada decisão de pensar, falar, comandar. Acho que teatro também trata esses personagens populares apenas como tipos. A peça é justamente um monólogo para demonstrar que ele tem pensamento. Por exemplo, “Arlequim, servidor de dois patrões”, do Carlo Goldoni, uma peça clássica. O Arlequim é alguém que está procurando comida. São personagens lutando pela sobrevivência. Eu queria demonstrar que mesmo em alguém que está lutando pela sobrevivência, tem pensamento, tem subjetividade. Por isso colocar esse corpo em cena. Então a adaptação tentava preservar o fluxo de pensamentos do personagem. E, ao mesmo tempo, tem vídeo em cena, como se fosse a extensão da cabeça dele, porque o personagem pensa de maneira cinematográfica. Ele pensa a vida como uma montagem de cinema. Então foi uma investigação de como esse corpo pode estar em cena.

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Foto: Leo Aversa

Em O Desentendimento, o pensador Jacques Rancière diz que “a política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela” (26). Me parece que sua metodologia se enquadra nisso.

MF: Eu acho que a democracia precisa não apenas de representação, mas de produção de presença. A democracia não é só representação. A gente acostumou a pensar que a democracia é representação, representar a alguém. A esquerda adora representação, dizer que representa os pobres. Eu acho que a democracia precisa de presença. Então todo meu trabalho, seja na literatura, fazendo filmes, peças ou metodologias sociais, como é o caso da Agência de Redes, que escuta ideias de jovens para botar em prática, é de tentar produzir uma presença de figuras que não são de um determinado meio num determinado meio. Eu sou um cara do Rio de Janeiro, a minha questão é o Rio de Janeiro. Eu tento fazer com que pessoas que vem de onde eu venho tenham voz dentro da cidade. Que os recursos vão para esses lugares de maneira mais democrática, e que a gente tenha uma cidade que assume seu caráter popular contemporâneo com muitas vozes. Os pobres já foram muito representados. O pobre já foi o homem do campo, em que a sua subjetividade se confunde com a terra. Eu estou falando de Vidas Secas. O pobre já foi o homem puro e ingênuo que vem para a cidade grande. Já foi o marginal. O pobre nunca foi narrado como contemporâneo, você nunca teve um personagem pobre com memória. A gente está fazendo um personagem pobre com memória. Escutar a ideia do jovem, ao invés de conscientizar o jovem. Não gosto dessa ideia de “vamos conscientizar o jovem dos seus direitos”. Não! Vamos criar junto com ele a presença dele dentro da cidade, porque a maior cidadania é poder falar de si. Acho que uma democracia precisa de corpos com diversidade em diversos lugares do poder. Então fazer O Guia Afetivo também foi uma tentativa de construir essa presença. “Veja, literatura, um personagem pobre também narra a cidade com memória”. Então o meu trabalho é esse. Resumindo, é produzir mais presença. Talvez isso tenha a ver com Rancière. A produção de presença. Romper com uma lógica histórica de “estamos falando pelo povo”. Não! Vamos tornar a sociedade mais diversificada. Vamos botar mais vozes.

Você escreve uma coluna de opinião para o jornal O Globo. Antes de terminar 2015, você declarou o fim do boom da periferia. O que quis dizer com isso? O que está por vir?

MF: O boom da periferia foi esse encantamento e, ao mesmo tempo, uma tentativa de captura de tudo que vinha sendo produzido culturalmente pela periferia. Existia um fetiche com a periferia no Brasil, e a periferia ficou como uma commodity que alimentava projetos médios. De alguma maneira esse boom acabou. O que eu quis dizer ali é que só ter visibilidade, daqui para frente, não é suficiente para garantir direitos. Nesse boom, apareceu de tudo. Do funk ao passinho, aos projetos sociais de periferia, à uma juventude. De agora em diante, para continuar, tem que consolidar esses espaços. Não pode mais ser boom. Se a periferia continuar só a ser boom, aparece um, aparece outro, aparece outro… O mercado vai capturando. Essa lógica de boom que tinha que acabar. Agora é hora de ocupar espaços. Eu não estou dizendo que o fim do boom significa que o projeto foi pleno, mas que aquela lógica estava acabando. Para conseguir mais direitos é preciso agora estar em locais de comando. Isso significa o que? Em vez de filmar a favela, precisa ter produtora de filmes na favela. O que é um boom? Quando aparece algo desorganizado que qualquer um pode capturar. Qual é a fase depois do boom? Vamos crescer, vamos consolidar. Daqui em diante, se a periferia continuar sendo apenas um boom, ela vai ser commodity para alimentar o que já é o status quo. Eu quis chamar atenção que de alguma maneira o boom da periferia alimentou novela, alimentou política cultural, só que agora esses que apareceram querem também discutir o poder, querem também discutir políticas, não apenas ser novidade. É uma nova fase. Não pode manter a periferia só alimentando com novidades a sociedade. Era isso que eu queria dizer.

O boom mantém o essencialismo da periferia…

MF: E de alguma maneira mantém a pobreza, mantém a desigualdade, porque a periferia vira um lugar apenas de alimentar o sistema. É hora de a periferia ocupar lugares institucionais. Eu acredito na institucionalidade. Eu acredito na necessidade de dialogar com o estado. Não acho que é bom para periferia ser coletivo. Coletivo é bom para classe média. O cara que vem de origem popular precisa aprender a dialogar com o Estado, ter instituição, ser ONG, porque ele precisa disputar o Estado. Um moleque de classe média que é um coletivo, ele vira um revolucionário, mas ele tem amigo artista, arquiteto. Ele não precisa de institucionalidade porque ele já nasceu na institucionalidade. Então se a periferia ficar só fazendo coisas no boom –o boom floresce em tudo quanto é lugar. Agora nós temos que ser maduros. Se a gente não for maduro para disputar, a gente vai virar sempre o que inventa coisas para sociedade. Por isso que foi importante, por exemplo, agora há pouco tempo o estado ter reconhecido os mototáxis como profissão. Isso é uma consolidação de um direito. Eu luto para que agora o que se faz na periferia seja reconhecido como mainstream, como indústria, e não mais como “ah, que legal os pobres estão fazendo isso, vamos transformar num filme sobre a vida de vocês”. Não, nós queremos contar a vida inclusive de pessoas de classe alta. Por que um cara que vem de favela não pode escrever um romance sobre quem vive em outro lugar? Por que a favela só tem que falar de si enquanto todas as outras classes podem falar de tudo? O que é o colonialismo? É alguém que tem direito de falar de você, o que você é. Então, eu acho que a periferia chegou num momento que ela inclusive tem que disputar uma nova crítica, porque a crítica que existe hoje tem categorias de análises que servem a um modernismo. O que é um modernismo? O pobre como alguém ingênuo, precário, carente, marginal. O pobre é contemporâneo, o pobre urbano. Quando estou dizendo que é necessário decretar o fim do boom, é assim “cara, nós não somos mais o outro, não somos mais uma novidade. Nós estamos aqui nesse lugar e queremos disputar o poder. Não queremos mais ser potência, porque se somos potência, somos capturáveis. Nós queremos ser poder”.

Eu acho que a sua estratégia é transformar a cidade…

MF: A cidade é mais importante para mim. A cidade. A gente sempre fala de Estado, né? Mudar o poder. Apesar do poder no Brasil ser desigual, ser um poder para a elite, eu sou fruto da cidade. Eu sou fruto das relações que eu criei na cidade, das redes. Mesmo sendo um jovem pobre, as redes da cidade e a minha maneira de me relacionar com elas, consegui inventar. Eu acho que a cidade é uma categoria pouca usada. A gente sempre acha que a cidade é apenas uma representação do poder. Não! A cidade pode ser uma outra categoria que não é o poder. Eu quero desenvolver a cidade como uma categoria alternativa ao poder. Uma maneira de manter a desigualdade – Santa Cruz que é o lugar onde eu cresci – é você só levar políticas de assistência social para Santa Cruz, e não pensar no desenvolvimento econômico de Santa Cruz. Enquanto Santa Cruz for o lugar que você leva políticas de assistência para os pobres e você não pensa num projeto urbano, projeto econômico… não existe um arquiteto nesta cidade, um urbanista que pensa Santa Cruz. As pessoas querem pensar o Leblon, o Centro. O problema não é só do poder. O problema também é dos campos criativos. Toda minha questão é a cidade. Como eu tensiono o poder a pensar a cidade.

Ao mesmo tempo, a cidade sempre está mudando. Agora, por exemplo, o Rio de Janeiro está numa fase de muita mudança por conta dos Jogos Olímpicos. Há ocupações de espaços como o Ministério da Cultura, movimentos estudantis e mais. Isso afeta a sua estratégia?

MF: Não. A minha estratégia é trabalho comunitário dentro das favelas. Minha estratégia é outra. Eu não acho trabalho comunitário ingênuo. Trabalho comunitário para mim não é dar a mão, ouvir as pessoas, fazer uma ciranda. Trabalho comunitário é, um pouco na linha do Richard Sennett, desenvolver uma inteligência comunitária de transformação. Eu não sou da resistência. Eu sou da invenção. Eu quero inventar. A minha maior resistência é inventar. Não afeta minha estratégia. Eu acho que tem muitas coisas acontecendo na cidade que são boas. Né? Foram dezoito escolas construídas na Maré. Eu não posso dizer que isso é populismo. Porque num governo do PMDB, o cara fez dezoito escolas na Maré e você diz “ah, é populismo! ”. O parque de Madureira é o maior equipamento de transformação. É como um espaço urbano pode melhorar as relações sociais. Então eu acho que, às vezes, as pessoas são contra algo que acontece por conta de uma disputa de poder. Eu quero pegar as coisas boas, eu sou muito pragmático. O que é bom aqui? Eu quero garantir políticas independentemente de quem está no poder. Porque, por exemplo, o próprio governo Dilma, teve coisas boas e coisas ruins. Eu faço parte de uma organização da sociedade civil. Não sou movimento social. O que uma organização da sociedade civil faz? Ela vê um problema e desenvolve uma solução. Um movimento social luta por uma causa. É diferente do meu trabalho. Acredito no reformismo radical, lento e gradual. Só que para isso você tem que desenvolver os pobres como lideranças. Os pobres tanto numa estrutura mais liberal como numa estrutura até mesmo socialista, acabam sendo subalternos. A gente quer formar a primeira geração de periferia que ocupe lugares de intelectuais, de decisão, de poder, de artistas. E que a gente não seja mais um outro que as pessoas vão levar a civilização. Então esse é um pouco meu projeto. Evidente que eu acho que o Brasil, ele é um Brasil — o governo do Lula mudou muito o Brasil. É inegável isso, é inegável. O que eu acho é que a gente precisa radicalizar, ir além disso.

Já mencionamos sua coluna de opinião no jornal O Globo. Além disso, você tem feito filme, literatura e teatro. E também tem uma presença nas redes sociais. O que você pode conseguir nesses últimos espaços que nos outros não?

MF: A coluna me deu um rigor de pensar toda semana.

Um compromisso…

MF: Toda semana. Eu acho que o colunista, ele escuta. Ele não só fala. Então a coluna é uma tradução também das coisas que eu escuto. Me deu um rigor de escrever e de pensar com responsabilidade. Se eu tivesse só o Facebook talvez eu fosse mais agressivo. Eu penso sempre que na coluna eu tenho que escrever para quem não concorda comigo, e não para marcar posição. Eu não quero marcar posição. Eu quero dialogar. Eu quero trazer o outro que não pensa como eu, para dizer “olha só, pensa por esse lado, veja isso”.

Voltando para O Guia, não o encontramos mais nas livrarias, está esgotado. Não pensa em reeditá-lo?

MF: A gente fez três edições. Então, não sei. O Guia me deu muita coisa. Eu acho que a literatura dá precisão do que você quer pensar. O cinema é um agenciamento, o teatro é bacana porque você convoca pessoas para ver o outro, ali, presente. Mas a literatura é uma voz muita precisa. O Guia já me deu muita coisa. Eu não estaria fazendo o que eu faço hoje, do ponto de visita inclusive metodológico, não de reconhecimento, se não fosse O Guia. Ele sempre me dá muitos encontros bons com as pessoas. É muito bom isso. Um livro é uma possibilidade enorme de um contato direito com o outro, sem mediação. Isso é muito interessante. Não sei o que pode acontecer com O Guia. Mas eu gosto muito dele.

E a gente pode conseguir O Guia em PDF. Assim chega a…

MF: Mais pessoas. Tem muitas teses. Sempre aparece alguém “ah, tô fazendo uma tese sobre O Guia”. Mas é muito louco! Tem gente que faz tese de biografia, tem gente que faz tese de autoficção, tem gente que faz tese de periferia. É muito interessante esse descontrole, isso é muito mais uma questão do leitor do que do autor. Eu espero do Guia que ele encoraje outras pessoas. Quando eu lancei o guia eu fiz uma turnê, não para divulgar o livro, mas para mostrar como eu consegui escrever. Eu mostrei o meu método inventado para outras pessoas. Em Cuiabá eu trabalhei com mulheres da agricultura que fizeram memórias do feijão. De toda relação delas com o feijão. E fui em cidades fazendo isso. Então o que eu quis fazer com O Guia foi também encorajar outras pessoas a escrever. Muita gente fez oficina comigo aqui a partir do Guia e escreveram historias a partir do território. Eu acho que a grande invenção do nosso trabalho, além dessa presença do pobre, também é pegar o conceito de território e tirar ele da sociologia e botar na arte. Toda nossa criação é a partir do território. O território é uma categoria libertadora. Porque até então, tudo o que vinha da periferia era pensado num tipo de personagem que as pessoas achavam que tinha ali. Como se ali não tivesse produção, criação. Então eu já dei oficina de memórias de leite que você bebeu, memória do que você come. Memória das ruas, lugares onde você sente medo. Toda estratégia que eu bolei, eu abri. E vejo hoje outras pessoas indo além, a partir disso. Eu acho que o mais importante no Guia é esse encorajamento para outras pessoas também pensarem “caramba, vou fazer memória dos meus objetos, vou fazer memória das ruas que eu ando. ” A estratégia – porque a literatura ainda é um dos lugares da elite, né? – é encorajar as pessoas que vem de periferia a escrever, porque a periferia tem muita oralidade. A literatura pode atingir poucas pessoas, mas ainda influencia muita coisa. Eu acho que o melhor do Guia foi mais a difusão da estratégia da escrita do que o próprio livro.

A ideia que qualquer pessoa pode escrever…

MF: Isso. Algum tipo de estratégia estética, né? Essa imagem também de que o escritor é alguém sentado, escrevendo um livro com o abajur ligado, é uma construção social de uma ideia de um autor burguês, introspectivo, excêntrico. É uma imagem do século XIX. Ela inibe outras pessoas. Para escrever O Guia eu fiz quase um atelier dentro de casa, colando bula de remédio, fazendo inventário, fazendo mapa, gravando. Então escrever também é plástico. Não é uma coisa que baixa. O autor pode ser outra coisa também.

Como é que você se tornou um escritor?

MF: Foi uma máquina de escrever que eu ganhei. Um dia apareceu uma máquina de escrever lá em casa. É por isso que eu acredito em dar instrumentos para as pessoas. Essa máquina de escrever mudou tudo. Uma máquina de escrever que meu padrasto comprou num ferro-velho. Se aquilo não tivesse chegado, eu acho que não teria tido essa relação com a escrita. Agora, publicar foi através de lutas, e isso e aquilo, né? A literatura precisa de tempo. Eu acho que o Facebook também me ajudou muito, de começar a escrever com mais continuidade. Mas eu tinha uma intuição que eu precisava escrever, desde muito garoto. Eu lia muito. Eu gosto do mundo mental da literatura, mais do que do mundo mental da teoria. No mundo mental da literatura cabe a errância, o que está por vir. A teoria tenta dizer o que já existe, né? A literatura tem um compromisso de produzir uma presença nova.

De imaginar…

MF: Isso! Imaginar e que vai inventar realidade. Então o mundo da literatura talvez tenha mais a ver com a minha história, porque é uma história de ir pegando conceitos e ir criando sem muito rigor. De alguma maneira a música punk me ajudou a escrever num primeiro momento, fazer letra punk. Eu acho que foi um acúmulo de incentivos. O que eu tento fazer com meu trabalho agora é que isso não aconteça mais por acaso do destino, que a gente leve isso para outras pessoas. Um exemplo que eu sempre gosto de dar, a mãe na periferia bota o nome do filho de John Lennon da Silva, não é por alienação. É um desejo de cultura, só que ela não sabe fazer poesia porque ela não teve instrumentos para isso. É uma maneira de marcar a vida. Acho que tem que dar instrumentos para as pessoas. A máquina de escrever quando chegou lá em casa, foi um instrumento. Não foi assim “ah, vou escrever”. Um dia ela estava lá, eu dei um toque. Depois dei outro toque, outro toque. Eu fui criando essa intimidade. Agora, eu gosto mais de escrever porque escrever tem fluxo mental, e eu gosto disso.

Você voltou a dirigir peças…

MF: Minha primeira formação foi em teatro. Eu devo tudo ao teatro.

Em que está trabalhando agora?

MF: Eu criei um festival onde a gente escuta histórias de um orador, transforma em cena e apresenta na casa dessas pessoas. Esse festival acontece no Rio, em Londres e na África do Sul. O teatro como uma forma de agir na cidade e buscar novos elementos para a dramaturgia, e a própria ideia de cena que não acontece só no palco. Eu gosto de romper fronteiras da cena. Minha questão é: como colocar a subjetividade urbana em cena, e que não tenha afetações contemporâneas? Como disputar o lugar do contemporâneo? O popular é sempre deixado para o lado do folclore. Como disputar que o popular é contemporâneo? Contemporâneo não é só se arrastar no chão, fazer um tipo outsider. É contemporâneo também esse trabalho, ele não é só social. Eu acho que o teatro é o lugar de produzir presença, para que o outro se disponha a ver um outro em cena contando o mundo dele. Eu acho isso muito poderoso no teatro. Num mundo em que tudo é interação, o teatro propõe concentração, você se concentrar para ver o outro. Então eu gosto. Foi a escola de teatro que me deu a ideia de cultura, me deu a ideia de como pensar o mundo, de produzir. Então eu só cabia inicialmente no teatro, porque a literatura e o cinema eram muito fechados. No teatro cabia penetras. Então eu devo tudo ao teatro. Eu sempre gosto de voltar ao teatro.

* Marcus Faustini proviene de la zona oeste de Río de Janeiro y la periferia carioca marca todo su trabajo. Faustini ha cruzado casi todas las fronteras creativas con obras de teatro, cine, literatura y trabajo comunitario. En 2009, publicó O Guia Afetivo da Periferia (Enlace para PDF: http://www.hotsitespetrobras.com.br/cultura/upload/project_reading/0_Miolo_completo_Guia-Afetivo-Periferia-Miolo-6_online.pdf), lo cual llevó al escenario este año.