Leis de incentivo x entretenimento: contra a depressão cultural na literatura brasileira

Por: Anderson Pires Da Silva*

IMAGEN: Lei Rouanet

 

A partir de una declaración de la actriz brasileña Clarice Falcão, el escritor y docente universitario Anderson Pires analiza el devenir de las Leyes de incentivo a la cultura desde el año 2000 hasta el presente. Anderson desmenuza los usos de la ley y diferencia proyectos de cultura y proyectos de entretenimiento para poner en escena el modo en que se conjugan el capital público y los intereses de grandes espectáculos privados, como ocurrió con los casos polémicos del Cirque du  Soleil y la Feria de Frankfurt. Finalmente, invita a los lectores a transitar otras experiencias de creadores independientes que en los últimos años vienen gestando un “sistema literario alternativo”.

*Esta nota pertenece al dossier “Mientras la antorcha: los 100 primeros días después del golpe en Brasil”, a cargo de Juan Recchia Páez. Para una introducción y todas las notas del dossier hacer click en el siguiente enlace: http://revistatransas.unsam.edu.ar/dossier-mientras-la-antorcha-los-primeros-100-dias-del-golpe-en-brasil/dossier-2/


 

Recentemente, em uma postagem no twitter, republicada na edição brasileira da revista Rolling Stone (junho de 2016), a jovem atriz e compositora Clarice Falcão declarou: “Só lembrando, não faturo com Lei Rouanet. Só pra vocês voltarem aos xingamentos de piranha vagabunda, que pelo menos são verdade”. Há nesse desabafo poser dois pontos que gostaria de enfatizar. Primeiro: a falta de uma compreensão profunda, por parte de determinada classe artística no Brasil, sobre a extensão de uma lei de incentivo cultural; segundo, a depressão cultural causada por essa compreensão limitada associada a uma crise de descrença política.

Um breve resumo para o leitor argentino sobre a Lei Rouanet.  A Lei Federal de Incentivo a Cultura foi sancionada pelo ex-presidente afastado Fernando Collor de Mello em 1991. Ficou conhecida como Lei Rouanet em homenagem ao intelectual Sérgio Paulo Rouanet, então secretário de governo. Em linhas gerais, é uma política de incentivo fiscal que possibilita empresas (pessoas jurídicas) e cidadãos (pessoas físicas) aplicar uma parte do Imposto de Renda devido à união em ações culturais. Logo, isso será um negócio para grandes empresas e um problema para a Receita Federal.

A Lei Rouanet surgiu como uma solução para o governo Collor que havia, um ano antes, transformado a cultura em um ministério falido, cortando todas as formas de incentivos federais através do Programa Nacional de Desestatização. O Resultado imediato foi a extinção da Embrafilme.

Criada em 1969, no auge da ditatura militar, a Embrafilme era um empresa estatal produtora e distribuidora de filmes. Desse modo, o governo passava a controlar a produção cinematográfica do país, salvo a produção independente dos cineastas marginais, como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e José Mojica Marins (também conhecido como Zé do Caixão). Criava-se uma relação de dependência dos produtores cinematográficos às políticas do Estado. Logo, quando extinta a Embrafilme, a produção cinematográfica brasileira entrou em coma. Foi para se livrar da imagem de “inimigo da cultura” que o filisteu Fernando Collor sancionou a Lei Rouanet, como um paliativo cultural, uma chupeta para bebês chorões.

Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), sob o neoliberalismo como paradigma econômico, a Lei Rouanet não tinha o mesmo status e importância que terá no governo Lula-Dilma. Compartilhando de um descompromisso com o incentivo à cultura semelhante ao de Collor, Fernando Henrique praticou uma política econômica de privatização das estatais (ou seja, aprimorando o PND), redução de gastos públicos, congelamento de salários do funcionalismo público, redução de bolsas de pesquisas, ausência de concursos públicos. Logo, diante dessa lógica neoliberal baseada na redução e no corte de incentivos públicos, não causaria espanto algum a extinção da Lei Rouanet. Muito pelo contrário, não só foi ajustada, como permaneceu e atravessou três governos presidenciais durante a década de 1990 (o período Collor, o governo de transição de Itamar Franco e o período FHC), até chegar ao mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) como uma das poucas coisas permanentes na política brasileira.

Por quê?

Durante os dois mandatos do presidente Lula, cujo governo foi voltado para uma política social efetiva, a Lei Rouanet se tornou a principal fonte de incentivo cultural do Brasil, a menina de ouro dos produtores culturais, tanto os honestos quanto os vigaristas, todos estavam de olho nela, artistas independentes e sonegadores fiscais.

Mas ao invés de simplesmente acusar de desonestos os benecifiários da Lei Rouanet, como alguns músicos e atores vêm fazendo (numa das maiores demonstrações de desunião de classe já vista na história desse país), é preciso visitar o www.cultura.gov para conhecer a diversidade de projetos aprovados, que se estendem de festivais de teatro em cidades do interior à restaurações de obras do nosso patrimônio histórico e projetos educativos. No final de 2014 foram aprovados 804 projetos para captarem recursos via Lei Rouanet.

A Lei Rouanet, sob o aspecto puramente teórico, começou a se tornar um problema quando surgiu, no interior do Ministério da Cultura, uma indefinição conceitual sobre “cultura” e “entrenimento”. O oportunismo e a ganância vieram depois. Pois bem, chamo de um projeto de cultura, os projetos de preservação de patrimônio arquitetônico quanto humano, isto é, as manifestações folclóricas de tradição popular. Por projeto de entrenimento entendo coisas como o Pipoca do psirico ou o Abba symphonic musical dance. São os projetos de entretenimento que geram a maior controvérsia, pois a rigor (e o argumento aqui é mais ideológico) são destituídos de um caráter cultural, pois não refletem nem a memória do povo e nem a história do país, e muito menos fazem parte das pautas de inclusão que regiam o ministério da cultura no período Lula-Dilma.

A primeira polêmica nesse sentido envolveu a turnê brasileira do Cirquedu Soleil em 2006. Na ocasião, o jornal Folha de S. Paulo (um dos principais opositores do governo Lula), publicou com alarde a seguinte manchete: “Minc libera R$ 9,4 mi para Cirquedu Soleil no Brasil”[1].

Ao longo da matéria, a jornalista Silvana Arantes informava que “a empresa CIE (Companhia Interamericana de Entretenimento, de origem mexicana), foi autorizada pelo MinC (Ministério da Cultura) a ficar com 9,4 milhões. A operação foi feita pela Lei Rouanet. É o MinC quem avalia os projetos candidatos a esse benefício e autoriza os valores que eles poderão receber (ou ‘captar”, no vocabulário da lei)”. A jornalista insinua com as palavras “operação” e “receber” que algo escuso acontece. Em suas próprias palavras: “Os patrocínios obtidos pela CIE expõem o uso da lei em projetos de presumível viabilidade comercial, como provam seus êxitos de bilheteria. Os ingressos do Cirquedu Soleil, por enquanto, estão à venda para os clientes Prime (prioritários) do (banco) Bradesco”.

A autora canadense Naomi Klein, em seu livro Sem logo – a tirania das marcas em um planeta vendido, chama de “branding da música” essa expansão do capital privado para o campo dos grandes espetáculos e festivais. Porém, no caso brasileiro, quando o capital privado, para investir em grandes espetáculos, recorre aos recursos públicos, há uma redireção ou disvirtuamento da razão de ser da Lei Rouanet, que é estimular os produtores independentes, ampliar a diversidade artística e o acesso aos bens culturais. Por isso, diante da polêmica do Cirquedu Soleil, o MinC divulgou “uma nota de esclarecimento”, informando que a “busca de democratização do acesso por parte da população” era uma das “principais diretrizes da atuação desta gestão na condução das ações do Ministério da Cultura”[2]. Nesse caso específico, a “democratização do acesso” se traduziu na exigência de meia-entrada para o espetáculo, assim os valores do ingresso variaram entre 50 a 350 reais.

Pelo exposto, fica claro que uma das aplicações da Lei Rouanet, além de fomentar as expressões de menor ou nenhum fim mercadológico, também seria facilitar o acesso da população aos grandes espetáculos, ou seja, uma democratização do entretenimento. Pode um governo de esquerda fazer isso? Para seus críticos, não. Por isso, os deputados da base aliada do vice-presidente Michel Temer, articulista da conspiração que afastou a presidente eleita Dilma Rousseff do exercício da presidência, chegaram a pensar uma “CPI da Lei Rouanet”. Porém, os parlamentares foram confundidos pela própria da natureza da lei.

Segundo o colunista do jornal O Globo, Lauro Jardim, o “propósito da comissão” era “atacar artistas simpatizantes da esquerda e do petismo que tenham sido beneficiados pelo patrocínio cultural”, porém, como o próprio articulista informa, os “campões da lei” não eram necessariamente simpatizantes do petismo, por exemplo, o Itaú Cultural. Inclusive, entre os benecifários da Lei Rouanet se encontra a própria Rede Globo de Comunicação, o mais ferrenho opositor e principal responsável pelo afastamento da presidente Dilma. Assim, se entre os campeões de financiamento estava a produtora Aventura Entretenimento, especializada em musicais como “Elis, a musical”, também estava o Museu de Arte de São Paulo, o Rock in Rio e a Orquestra Sinfônica Brasileira[3].

Durante o governo Lula, principalmente quando a crise econômica mundial ainda era uma “marolinha” para a economia brasileira, em torno da Lei Rouanet se formaram verdadeiros especialistas em Editais de Cultura, a serviço de artistas consolidados no mercado. O caso mais emblemático envolveu a cantora Maria Bethânia, que receberia R$ 1,3 milhões para fazer um blog que se chamaria “O mundo precisa de poesia”, no qual teria um vídeo diário da cantora interpretando poemas, numa série de clips dirigidos por Andrucha Waddington. Evidentemente, para os produtores independentes, os usuários da plataforma blogspot.com, foi uma piada digna do Coringa. Pressionada pela opinião pública, Maria Bethania não levou o projeto à frente, mas já era tarde demais. Estava exposta. Outros artistas, que hoje são mais bem sucedidos no mercado do que ela, como Luan Santana ou Cláudia Leitte, usaram dos recursos da lei para montarem suas turnês.

A Lei Rouanet foi arrastada pelo espectro da Operação Lava-Jato e o clima acusatório em que o país vive. Em junho de 2016, a polícia federal de São Paulo iniciou a “Operação Boca Livre”, investigando o desvio de R$ 180 milhões em projetos culturais aprovados pela Lei Rouanet. Segundo a BBC Brasil, entre os suspeitos de irregularidades estavam os projetos envolvendo artistas consagrados[4].

Desse modo, atualmente, rechaçar a Lei Rouanet ou dizer que nunca foi beneficiado é, por parte de alguns artistas, um discurso anticorrupção moralista. Trata-se, no exemplo de Clarice Falcão, de um J’accusede Zola sem causa. Um discurso que se quer ético firmado na acusação. Nunca faturei com a Rouanet, logo sou um artista íntegro. Ao mesmo tempo em que a maioria dos artistas brasileiros estabelecidos (incluindo os escritores) ensaia há muito tempo uma crítica negativa em relação às nossas estruturas políticas, muitas vezes são beneficiados por essas mesmas estruturas. Caso emblemático da Feira do Livro de Frankfurt, dedicada à literatura brasileira, em 2013.

Na ocasião, na fala de abertura, o escritor Luiz Ruffato proferiu um contundente discurso, denunciando: o racismo na sociedade brasileira, o genocídio dos indíos ao longo da história do Brasil, a demagogia da democracia racial, a homofobia, o sistema de ensino público precário, a violência e o massacre da população jovem negra e pobre nas periferias das cidades. Embora tenha ponderado os avanços, como o restabelecimento da democracia (“a maior vitória da minha geração”), “a expressiva diminuição da miséria”, “os mecanismos de transferência de renda” ou de “inclusão como as cotas raciais nas universidades públicas”, no cômputo geral, éramos “machistas, covardes e hipócritas”[5], ao final, predominou o tom de descrença, ou uma re-ritualização daquilo que Nelson Rodrigues chamava de “narciso às avessas” para descrever a visão do brasileiro sobre o Brasil.

O mais interessante na fala de Ruffato – além do seu tímido elogio ao governo Lula-Dilma, no momento em que muitos artistas têm medo de fazê-lo – é o modo como tenta se desvinculhar da tradição elitista da literatura brasileira mainstream, recorrendo às suas origens pobres no interior de Minas Gerais, “filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto”, um salvo-conduto . Foi uma saída, mas não uma solução. Soou populista ou, como ele mesmo diz, ingênuo. Não importa o lugar de origem, sim o lugar onde se está.

Em matéria publicada na página brasileira do El pais, em março de 2014, ainda sob os ecos da Feira de Frankfurt, a seção de cultura do jornal estampava a seguinte manchete: “A nova literatura brasileira: jovem, branca, urbana e de classe média”[6]. Não se pode dizer que os 70 autores convidados para a feira fossem jovens, porém, o conjunto de autores refletia uma política literária regida pelas grandes editoras e a exposição de seus catálogos, excluindo assim autores independentes, escritores negros importantes como Conceição Evaristo, a literatura de autoria índia. O único autor negro presente na Feira foi Paulo Lins, o autor do fenômeno Cidade de Deus.

Luiz Ruffato encara a literatura brasileira contemporânea como um “compromisso político”, e o lugar de onde fala é o de um autor bem inserido no mercado literário, embora se considere um operário das letras, mas os autores têm grandes dificuldades em responder com inovação às exigências de nosso tempo. Não basta dizer que a sociedade brasileira é machista, homofóbica, racista e intolerante, é preciso transformá-la. No seu discurso em Frankfurt, Ruffato fala no “papel transformador da literatura”, porém esse poder transformador tem como referência o indivíduo, dizer que a “literatura pode mudar a sociedade” porque pode “alterar o rumo da vida de uma pessoa” e “a sociedade é feita de pessoas” é uma crença tautológica. E, convenhamos, uma resposta convencional.

E assim caminha nossa humanidade e chegamos aos tempos difíceis de agora. A depressão cultural existente em uma classe artística dependente das leis do mercado; e do outro, autores engajados politicamente descrentes.  Porém, fora desses círculos deprimidos, há vida e alegria.

Em várias cidades do país, criadores independentes mantém uma produção, um sistema alternativo, que tem respondido às exigências políticas mais prementes em nossa sociedade, aquelas mesmas apontadas por Ruffato, não o lamento indignado sem saída. Contra a intolerância, os atos de exclusão e os preconceitos, há uma produção independente que se firma através de saraus, encontros, pequenas editoras, festivais. Uma demonstração dessa força foi a exposição Poesia Agora, realizada no Museu da Lingua Portuguesa, em São Paulo, durante os meses de junho a setembro de 2015, reunindo em sua programação vários grupos de poetas que atuam no país[7]. Em Juiz de Fora, cidade onde vivo, há toda uma nova geração dos anos 2000 para cá, principalmente no campo da poesia, que tem refletido uma nova atitude que considera como problemas políticos o combate à intolerância, à violência, ao preconceito, desafiando a convencionalidade e criando novas atitudes. Partedessa produção pode ser conhecida nesses lugares:

ecopoetico.blogspot.com

www.aquelaeditora.com.br

www.edicoesmacondo.wordpress.com

www.trovadoreseletricos21.blogspot.com.br

www.jornalplasticobolha.com.br.

That’s all folks.

* ANDERSON PIRES DA SILVA é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos produtores do Eco Performances Poéticas. Publicou seu primeiro livro, Trovadores Elétricos, pela Aquela Editora em 2013. 

Notas:

[1]http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u59903.shtml

[2]http://www.cultura.gov.br/o-dia-a-dia-da-cultura/-/asset_publisher/waaE236Oves2/content/nota-de-esclarecimento-sobre-o-cirque-du-soleil-76286/10895

[3]http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/os-campeoes-da-lei-rouanet-em-2015.html

[4]http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36364789

[5]https://www.youtube.com/watch?v=tsqcziX5_6E

[6]http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/16/cultura/1395005272_200765.html

[7]www.mudeudalinguaportuguesa.org.br