,

O ILUDIDO, de Allan Da Rosa (POR)

 Por: Allan Da Rosa

Imagen: «Sin título/ Sermón de la sangre», León Ferrari (1962).

1- Como se insere «O iludido» no seu livro Reza de mãe?

– é uma história sobre destino e a necessidade e o gosto de jogar. Sobre o apetite crescente e como nos recriamos quando estamos na beira do abismo. Trata de sobrevivência e de relações intra-raciais, no tabuleiro do genocídio do povo negro no Brasil e das forças que a religião pentecostal vem movimentando junto com o pensamento policialesco que já é antigo e cada vez mais se entranha em nossa sociedade.

 

2- Você afirmou que “em cada sílaba desse conto tem capoeira”. Como aparece?

– talvez o jogo, o propor e receber. a maleabilidade. a necessidade de sedução, que só ocorre se o sedutor também se deixar seduzir pela ideia ou pela forma das tretas e desejos. buscar o ponto do desenho em pleno desespero, lidar com a graça e a dureza, o encanto e o medo.

 

3- Você pensa a sua produção para leitorxs marcadamente brasileirxs? 

penso em leitores de todo naipe e lugar, já tive leituras vindas de gente de outros continentes e já partilhei momentos inesquecíveis em debates em outros estados e países, com interpretações, identificações e estranhamentos acachapantes. mas sim, o sonho se realiza de uma jeito ainda mais especial quando nossos textos são lidos nas vielas e quebradas. os debates, enantos, raivas e abertura dessas leituras são imensas vitaminas e ensinamentos.

 

4- Qual é a relação entre o conceito de Literatura Periférica, que você criou, e as literaturas afro (africana, afrobrasileira, afrolatinoamerica)? 

– essa onda foi criada por várias pessoas das quebradas e, importante, de dentro pra fora. não nasceu em sanha de vitrine, não veio de ventríloquos e não surgimos como marionetes. foi e é a percepção e a reflexão sobre nossas vidas e sobre a escrita e a leitura em nossos cantos periféricos.

a presença negra nas américas é vasta e complexa, contraditória, assim como em nossos bairros suburbanos. consideramos a diáspora, o espaço que não cabe nas noções de nação e de fronteiras físicas, mas não desdenhamos da força do território físico, do chão onde ocorrem as trocas e os ninhos e revides.

muito de nossos temas, jeitos e metas são perguntas já feitas há muito tempo por nossos ancestrais. e os elementos fundamentais da vivência preta histórica estão nas nossas escritas, até mesmo quando é nítido o temor em nos aprofundarmos em nossos dilemas mais encarnados e cortantes.



Duro ver o irmão mais velho em espasmo de sangue, no chão tremendo os músculos da cara. Mero pacote inchado, quem dividiu beliche contigo. Um fio de respiração, retorcido, travado, indicando que ainda tá do lado de cá da fronteira com a morte. Isso é ainda pior do que saber que o próximo é tu.

Ali, estrebuchando entre convulsão e paralisia, o mano Valagume. De tão moído na porrada já era até um ser invertebrado. Tanta culpa no cartório que um escrivão só não dava conta de sumariar o arquivo. Agora um fiapo de orelha rasgada e sola agulhada, peito furado de cigarro.

– Meu irmãozinho Caçú, presta atenção: nosso boletim de ocorrência a gente traz na pele e no CEP. – Valagume disse ainda forte na primeira noite de zuação. Cabeça esverdeada, desenfiada do vômito dum balde. Dizia que as mulheres de farda são as piores no arrocho, mais ruim que os cana macho. Coturno miúdo mira melhor o chute, primazia no apertar dos bagos. Mão pintada de esmalte furou seu queixo, com ponta de lápis abriu sua bochecha. Ele ia amarrado em vassouras e voltava torto, cada vez mais mutilado. Firmaram um trato medonho com a lei: Caçú só iria pro arrebento depois que Valagume tombasse de vez. Essa já foi a primeira porrada na casca quebradiça do psicológico.

– Lincha, resolve na peixeira, nem gasta munição com esses trastes! – É época do povo esperneando no controle remoto, infeccionando telefone com mensagens de execução pra Deus e os coronéis – Apartamento de bandido é no cemitério, quintal de bandido é a vala! – Júri de internet bate o martelo na mesa e na testa, esporra na macheza do sofá. – Hoje eu como na gamela trincada, amanhã na porcelana! – Multidão já balança a bandeira de proteção ao patrimônio. Um dia há de pagar seguro pros herdeiros, assinar com caneta tinteiro o testamento da mansão na praia, contratar a vigilância … um dia… é só parar de trabalhar um pouco pra dar tempo de ganhar a dinheirama toda. Milhões.

Uns têm crença na guerreiragem individual, esforço de titã e de monge, alpinista de elevador pra cargo bom, subir e assinar o destino de vencedor. Outros pregam a força do povo unido, única vereda pra reverter a vampiragem e desfrutar junto de escola com lousa, banheiro sem fedô, churrasco sem miséria, beira de piscina, talvez um veleiro… Quem tem mais sapiência? Quem molha mais o pé na poça da ilusão? Caçú se perguntava quando salpicava orégano na pizzaria, seu trampo e UTI de cada noite, embalsamado em molho de tomate. Lembrava do Tonho, motoboy que adorava orégano. Tomou aço na nuca quando ia entregar uma meia calabresa, represália da corporação pro assassinato de um PM no Jardim Maxixe. Constou como troca de tiros a defesa da ordem. Rádio pôs entrevista lacrimogênea com a esposa do soldado exaltado, herói da família brasileira. Nenhum chiadinho de estação ouviu mãe nem filha de Tonho nem de nenhum dos outros 15 que comeram fogo naquela madrugada, do Jardim Maxixe ao Jardim Cará, no município de Saboão da Terra. Teve jornal que publicou foto do enterro, flash do desespero, capacete sangrado, mas ficou nisso que já tá bom pra vender.

E Valagume ali currado, bostado, depilado, unha arrancada, dois narizes e cinco olhos na cara de tanta porrada. Espasmos antecediam a morte que teimava em demorar minutos eternos. Na despedida recebeu jantar de gala colocado na boquinha, aviãozinho na colher servindo arroz embolotado com vidro moído. E Caçú buscava paz no temporal da cabeça pra bolar sua fuga. Até aceitava caixão mas sem esse escarro todo. Sem esculacho, sem chupar nem sentar em nada à base de coronhada.

Inda cinco dias antes, Valagume tragava sua planta no quintal, sorrindo de criar seu pivete, encantado na pureza do filhote e na paciência de ensinar a jogar futebol de botão. Manha crescente do menino segurando a palheta, o tóquinho do tôquinho no campo de madeira verde, a proeza de ir botando curveta no passe, a medida da força no dedo ao disparar pro gol. Delícia de tomar gol da criança. Pureza. – O muleque faz o gol em mim, grita gooool com braço pro alto e vem todo sorridente me abraçar, cê acredita, Caçú? Ó a inocência… Justo em mim, do goleiro da caixinha de fósforo vazado, perdendo a decisão… meu carrasco vem comemorar comigo.

Juntava toda famiage pra ver o guri inventar o dia e mostrar a magia do óbvio nas suas vidas, perguntar se o zero é o nada ou é o muitão do número mil. Caçú querendo traquinar, viajar na ideia com o sobrinho, mas perante os adultos se limitava a observar, travado na muralha da sua timidez, quietinho.

– Coronel, o senhor destoa da média. Tem tirocínio, habilidade admirável de comando, domina a medida da força no dedo em disparar pro necrotério. Bem superior à inteligência desses seus jagunços que atiram porque só pensam em promoção, em bônus caveira. – diria baixinho o sussurro na orelha do patrício – Apesar do continente que separa meu moleton do seu colete à prova de balas, nossa cor nos une, compreendo sua grandeza ancestral. – Caçú pintava na mente a fala garbosa de comício que deveria pronunciar mas que sua sem-gracice não permitia. Assim ganhou consideração na quebrada, a sabedoria de quem fala pouco. Só ele sabia o quanto queria contar… e a saliva fervendo na boca, engripada na vergonha de dizer.

Respirou, tentou prorrogar sua condução pro inferno, soltar a letra pro coronel, mas sua voz saiu ganindo, baixinha. Nos pés, o restolho do mano velho Valagume ainda gemia.

Tantos julgavam a arrogância de Valagume, o gosto de submeter. Mas Caçú desde pequeno sabia, sabia e não entendia, que se alguém abrisse canal de misericórdia na hora do sopapo, aí seu irmão já cancelaria qualquer arreio, não maltratava. Quem pedisse desculpa com alma no olho ganhava breque no castigo e brinde de saúde.

Assim, Caçú tinha que arrematar de uma vez aquela agonia do irmão destroçado no chão, terminar aquela bagaceira, mas não podia dar o tempo de Valagume olhar clamando piedade, senão não conseguiria justiçar. No desespero quis chamar o coronel prum particular, balbuciou, mas o que saiu já foi rouco morrendo na boca. Palavra tremida evaporando a cada sílaba… até veio a atenção do coronel, mas num soslaio fingindo pena, rebaixando inda mais o fraquejo de Caçú.

Então numa faísca de respiro Caçú voou e sentou o pé na boca de Valagume. Essa botinada arrancou dois dentes que se entalaram na goela do mano. Caçú feito um centroavante de pebolim no bar do Quentura, sede do Zulu Futebol Clube em Saboão da Terra. Finou o irmão mais velho, findou agonia.

Foi a dinamite pra atenção dos fardados. O coronel encarou Caçú, o próximo do pau-de-arara, mas timidez nenhuma azucrinou o mais novo. Desatou a voz no volume pro galpão todo entender qual era tua panca:

– Vacilão! Era meu irmão mais velho, me ensinou o beabá do proceder mas era vacilão. Teve os remédios dos caminhos na mão e negou. Sabia o que era da sua necessidade, mas negou. Coronel, eu tenho uma proposta pra ti, você que sobe ladeira e desce viela caçando, que sabe que sempre tem uma mira apontando pra tua orelha. Tu vai girar fechado e voltar seguro de onde for.

A sobrancelha do majorengo inda rascunhou um desdém na testa franzida, mas havia uma fresta ali na vista que delatava seu ego, a sintonia da sua ambição. Pinicava na alma a oferta daquele maloqueiro. Tinha que ser do quilate noventa, preço da vida, porque era nessa beiradinha que tava a biografia do rapaz, já na linha de ser embonecado pelos fardados.

No raio do deboche, o coronel ri da audácia vagabunda. Mostra a fieira de homens sentados nos degraus do porão, atirando suas bitucas pra madrugada. Honrado, mostra os da sua tropa que preferem quebrar dentes e as concursadas que desfrutam é desentupir ouvido de muleque saliente. Cochicha pra Caçú sobre as taras dos que gozam branco, pastoso e quentinho na mão quando esvaziam lata de querosene incendiando favela. – Estão só te esperando pro recreio, neguinho.

A Caçú só cabe jogar o xadrez da sobrevivência. Se entrar no reio dessa onda defeca na calça do terror e se urina.

– Eu não tô esmolando, excelência. Tô te oferecendo a glória.

O coronel se esforça pra não delatar a fagulha entre seus cílios.

– Eu sei o segredo de fechar corpo, coronel. Imortal. Só tomba se tu mesmo vacilar e quebrar a regra. Te passo o segredo e tu não se preocupa mais nem com esses lobos da tua matilha nem com os urubus de fora do time. Pode invadir qualquer brenha, se meter em labirinto de favela, buscar o acerto… pode escoltar qualquer safado e até dispensar esse colete.

O coronel mastiga o interesse num palito, desafina de leve a sua máscara. Bigode se eriça.

– Meu irmão nunca botou fé, se finou. Olha aí! – Caçú aproveita e chega pertinho pra conferir que seu mano Valagume morreu mesmo, que acabou a dor. Coladinho no morto, viu numa mesa a renca de luvas de borracha que só esperavam o comando pra lhe azucrinar.

– Eu caminho onde quero, ninguém me pega e eu não cato ninguém. Já sabia que ia ficar aqui três noites guardado esperando a hora de te passar o segredo. Sem ninguém tocar na minha pele. Porque minha missão é te passar o desenho e sair inteiro.

O coronel olha fixo, seu corpo já se esticou, já pede mais calma pros soldados, manda sargento buscar um café. Caçú quer anunciar mais alto, esparramar a negociata pra horda toda, mas segura um bocadinho. Só queria não ser torturado, agora quer também não morrer, mas se crescer demais a garganta perde a vantagem.  E vai descobrindo que é velhaco como nem sabia.

– Tu tem sensibilidade, tem origem, não tem? Sabe que não é papinho. Vem da tua família também essa força, mesma fonte da minha. Tá na tua presença, na tua aura, não vê quem não quer ou não sabe. – E sussurra macio: – Esses bruto aí não te compreende, coronel... – Caçú ainda arando joga a semente na terra do coronel, o homem que leva o livro dos livros para as mães na volta do culto, que extermina as ervas daninhas em nome dos concílios de Deus, que teve sua luz numa perseguição:

– Um meliante sapecava quilo de tiro mas nenhum me acertava, eu ainda era sargento.  Vi um anjo cantando e empunhando a foice do bem. Anunciava a ceifa no jardim. – A revelação guiou a coragem pra limpar os pastos do rebanho. Abençoada missão de conduzir as almas pro julgamento de Deus.

Na igreja, respeitando hierarquia, nunca decretou nada mas já segurou no cinto um possuído pelos espíritos das trevas. A solução dos pastores, mais sabidos e mais elevados na administração dos problemas de sujeira, de finanças e escrituras, foi repelir o demo na pancada. Depois notícia correu que o fiel tava surtando epilético, que tentava era puxar remédios do bolso e não um tridente, mas quem tava ali sabe que a atmosfera… as orelhas geladas do crente ficando mais pontudas, pretas. Quem tem fé vê e viu.

O coração uma almofada, ser da congregação mais negra da zona sul. Via ali a purificação, a entrega, a redenção da escravidão. Os irmãos pretos das mesmas travessias, no templo dividindo a guarida de cada versículo. A doçura dos jovens subindo avenida, já em alta noite cantando louvores, patota devota. A crença sem tormentas passando pelo vale do fogo e da fumaça nas rodinhas da maloca, dos ilícitos dichavados. Segurança de passarem juntos pelos grupinhos mais escamosos dos fariseus. Segurança.

– Não teme, coronel. Não tem nada de possessão, macumba, demonice. Vai baixar nada em você, força nenhuma, que cavalo sem sela não guenta reio. Vai ser o inverso, tu é que vai mudar de corpo. Vai entrar em carapaça de tartaruga, vagaroso, longa a vida, verdadeiro colete à prova de balas é esse que tu vai ter. Também vai saber tornar em corpo de onça, rastejando ligeiro, o bote certo. E em corpo de rato também, pra entrar em qualquer biboca apavorando só com a fuinha, se alastrando fácil, dominando tudo que é subterrâneo. Isso não é pecado, coronel, não se aflija. Não é de seita, isso é teu. Vai encontrar o que é dos teus poros. Taí na tua íris, taí nas tuas lembranças de criança, nas conversa que tinha com os bicho, no jeito que sentia que era da turma deles. Lembra? Elementar.

A curriola fardada não tava gostando mas se calava. Censurável aquele molho, já nem era tão justo subir o cara sem tirar um sarro, sem descarregar a adrenalina da batalha, sem ver o fulano jubilado… já tão pequeno o soldo de cada um, tem que restar um bocadinho de porquê pra continuar nessa vida…

Mas o coronel mordeu o beiço e denunciou a tremedeira no coco. Experiente, calejado, como abraçou assim esse aplique? Ansiedade maestra lhe regendo. Apalpava o casco de jabuti no lugar da costela. Sendo rato faria o bigode ainda? O coronel surfava nas nuvens do desejo. Vesgo de ganância. Um olho viajava na sua pele de pinta de onça, o outro vigiava seus guardas porque sentia um bochicho no ar. Caçú sussurrou a jogatina – O senhor… aliás, você… manja que tem uma pá de subordinado aqui só butucando teu cargo, né, chefe? Tenho mais uma fortaleza pra ti. Um colar rezado e benzido, coronel, pras inveja de dentro de casa. Esse sim vai ser teu documento, mas se perder, zicou. Igual vocês faz com nóis quando tamo sem o RG. Ele te garante. Se não tiver a dispor tu toma nas costas.

E Caçú ia subindo a barganha, crescendo exigência. Só sobreviver já não era o mais desejado, sentiu que dava pra montar um castelo. Abocanhar e não apenas lambiscar. Sabia também de casas extorquidas pelos milicos na chantagem de controlar territórios e de não prender ex-aliados. Coronel mandou trazer as chaves de um sobrado enroladas num quepe. Farejou o desagrado dos seus subordinados, não armavam escarcéu, disciplina não permite, mas iam se esfolando no rancor miúdo. Saíram dois tenentes, o Leite-de-Cobra e o Ressecuela. Montavam sua casa de caboclo?

– Não, coronel. É pouco pra tanto reinado. Tu sabe que pro patuá vale uma moradia, mas pra teu império, não. (Pensou na filha do PM. Escambo majestoso. O chefe daria, mas Caçú não arriscaria). Na diplomacia da chantagem impôs uma mina gostosa e obediente. De desfilar, de mostrar o trato no dengo e na hierarquia. Mas bater nela não, só se precisasse. Essas bacaninha vinha de família e ele sabia, ouvia dos mais velhos, que no começo sempre se devia mostrar no soco o papel de cada um no dueto. Mas exigiu uma já adestrada, que ele era de paz e racional, nunca apreciou pancada. A técnica com o amorzinho seria uma didática só se muito necessária, uma pedagogia justa, pra manter a ordem no terreiro. – Me providencia uma mulher, coronel, é a paga.

Debaixo daquela espessura de marra, o coronel quase caiu do sapato. Deu uma cambalhota na conversa: – Tu vai ter, menino. Mas me prova que teu corpo não rompe com ponta nem com aço, que não trepida.

Caçú já tinha afanado a soberba do coronel e agora ou tava atolado numa lameira ou tava na crista. – Claro. Pode já pegar das metranca nova. Dessas levinha que o governo deu agora prucês, de alta definição. Pode apontar e me meter o arrebite que não vai fazer nem um talho. Mas primeiro me traz a formosa e também uma moto pra eu colorir meu caminho.

Coronel mandou buscar as duas possantes pedidas. Deu endereço da sobrinha malcriada, que dizia que Deus não existia. Agora ela ia ter a certeza. Chegou rápido, encapuzada numa garupa. Coisa fina pro machinho.

Caçú precisava de mais tempo pra sua mutreta. Ladino, dali sairia anjo ou carniça. – Muda, coronel, muda. Metralhadora pode falhar, explodir na mão, zuar o porão aqui. Busca um machado. Pode passar três vezes no meu pescoço, vai dar nada. Aí eu vou embora com o que é meu. Justo?

Pensou sua timidez da vida toda. Melhor manter a mudez, a gagueira guardada? Ou demorou pra ser locutor, papagaiar pra dominar picadeiro? Lembrou da vó. “Quem fala demais dá bom dia a cavalo”. Dizia também que nos momentos extremos é que surgia o espírito verdadeiro de cada pessoa. Quem parecia ser medroso, carreava uma cidade nas mãos. Quem parecia generoso, entrava na gaiola da mesquinharia. Na hora das urgências transbordava a gamela. Ele passou a falador num rasgo de um segundo e assim arquitetou seu passo. Jogou e ganhou.

Chegou o machado. Nunca tinha cortado pescoço, só pulsos. Era hora de aflorar os segredos que o coronel desconhecia. Caçú se via no rolê com sua moto e sua mina, inteirão, vivaço. Com tudo que sempre quis.

A lâmina varou aquela garganta toda. Foi a comédia pra tropa. O coronel engoliu o queixo de tanta vergonha e dali pra sempre ganhou seu nome de guerra. Batizado “O Iludido”, a piada do século. Decapitado, o caçula ruiu sobre a posta de Valagume, que ainda soltou mais um arroto final fedendo a teimosia de seguir vivo.