Aproximações à reedição de O Genocídio do Negro Brasileiro. Processo de um racismo mascarado (1978) de Abdias Nascimento
Por: Pía Paganelli
Traducción: Juan Recchia Páez y Martina Altalef
Em dezembro de 2016, a editora Perspectiva, da cidade de São Paulo reeditou –em parceria com Itaú Cultural e IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros de Rio de Janeiro– o clássico texto do famoso ativista afro-brasileiro Abdias Nascimento, O Genocídio do Negro Brasileiro. Processo de um racismo mascarado (1978). Na obra, o autor faz uma denúncia, no meio da ditadura militar, do racismo mascarado no Brasil, país com a maior população negra do mundo fora da África.
O negro não pode negar que ele é negro nem reivindicar aquela humanidade abstrata sem cor: ele é negro. É definitivamente vinculado à autenticidade: injuriado, escravizado, levanta-se, pega a palavra «negro» que lhe foi jogada como uma pedra, e orgulhosamente afirma-se como negro contra o branco.
Jean Paul Sartre
(Orfeu Negro, 1948)
Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. Nós os tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite.
Nelson Rodrigues
(Abdias – O negro autentico, 1966)
Falar do Abdias Nascimento (1914-2011) é abordar a história do movimento negro no Brasil do século XX, já que ele foi uma de suas figuras mais prolíferas. Nos anos trinta foi ativista da Frente Negra Brasileira (FNB), o primeiro movimento de massas afro-brasileiro a se consolidar como partido político, que tinha como principais demandas o culto à Mãe Preta e à defesa da “Segunda Abolição”. Abdias trabalhou como jornalista, poeta, dramaturgo, ator e artista plástico. Fundou o Teatro Experimental Negro (TEN) nos anos quarenta, junto com o famoso jornal afrobrasileiro O Quilombo, e foi pioneiro em levar para o Brasil as propostas do movimento francês da Negritude, cujos fundadores foram Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor e Léon-Gontran Damas. Em 1951, Nascimento foi um dos promotores da Lei Alfonso Arinos, primeira lei contra a discriminação no país. No final dos anos setenta esteve envolvido na criação do Movimento Unificado Negro (MNU), inspirado no movimento das lutas a favor dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, nas organizações negras marxistas como Panteras Negras, e nos movimentos de libertação dos países africanos. O MNU radicalizou o discurso contra a discriminação racial no Brasil, e manifestou uma dura crítica ao sistema capitalista. Ou seja, as categorias de raça e classe atravessaram, com especial força, as concepções de seus líderes. Com o retorno da democracia, nos anos oitenta, Abdias Nascimento se tornou senador e deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro.
Analisar O Genocídio do Negro Brasileiro implica destacar a ferida profunda –e muito fecunda– marcada pela ditadura militar e pelo exílio na vida e na obra do autor. A obra foi produzida no contexto da perseguição política sofrida por Nascimento pela ditadura militar, que ocupou o poder durante vinte anos (1964-1984) no Brasil. Essa perseguição o levou ao exílio em 1968, e marcou o começo da violência de Estado no país.
Nesses anos, Nascimento se exilou nos Estados Unidos, onde foi professor da Universidade do Estado de Nova York, e a partir disso, viajou como palestrante e professor convidado por vários países da África. Em Lagos (Nigéria) em 1977, o autor ia apresentar este texto sob a forma de um colóquio, motivo que explica as marcas de oralidade que alguns trechos ainda mantém, no II Festival Mundial de Artes e Culturas Negras (FESTAC). No entanto, essa apresentação não foi realizada por causa de pressões do governo militar brasileiro. Por este motivo, o ensaio circulou numa versão mimeografada (de 200 cópias), editado em inglês com o título “Racial Democracy” in Brazif: Myth or Reality?, com um prólogo do poeta nigeriano Wole Soyinka (prêmio Nobel de literatura em 1986), traduzido por Elisa Larkin do Nascimento, e publicado pelo Departamento de Línguas Literárias Africanas da Universidade de Ife, Ile-Ife. A censura e a distribuição quase artesanal do ensaio (que foi ampliado na sua versão escrita) que o próprio Nascimento fez entre intelectuais e colegas, permitiu que, em 1978, o texto recebesse uma ampla difusão entre intelectuais africanos e da diáspora e que fosse divulgado pela imprensa nigeriana. Todo esse processo é amplamente denunciado por Nascimento, em seu prólogo “A história de uma rejeição”, e no prefácio de Wole Soyinka. Graças a essa repercussão internacional, em 1978 foi publicado no Brasil, com prólogo do reconhecido sociólogo Florestan Fernandes, por Paz e Terra, uma das editorias que revitalizou a ação após a apertura política do regime (1974-1985), com um marcado perfil de oposição à ditadura, como tiveram, também, as editoras Civilização Brasileira e Vozes, por exemplo.
Na presente edição da Editora Perspectiva aparece, como novidade, um posfácio escrito pela especialista em temáticas raciais e viúva de Nascimento, Elisa Larkin do Nascimento, quem atualiza o debate da problemática racial no Brasil, quase quarenta anos após sua primeira edição. Em particular, indica o valor histórico do texto, já que denunciou internacionalmente uma situação que, nessa época, era pouco estudada e conhecida no Brasil, e que também antecipou muitas demandas que desde os anos noventa os movimentos afrobrasileiros começaram a reivindicar e, com isso, começaram a se formalizar como políticas públicas a partir do ano 2000.
Um detalhe mais desta nova edição é o design da capa: enquanto a primeira edição de 1978 mostrava uma ilustração de Jayme Leão na qual um homem negro, com um gesto de raiva, rejeitava as cadeias que pressionavam seu pescoço, a nova edição apresenta a fotografia de uma mulher negra, com um turbante africano e um rosto sério. Essa mudança indica que a nova edição circula em um contexto de menor violência política –ao menos na fachada– do aquele da década de 1970, e além disso, exibe a inclusão das mulheres –agentes cada vez mais ativas– dentro dos movimentos afro-brasileiros.
Contudo, o exílio de Abdias Nascimento nos Estados Unidos e suas viagens pela África, bem como as leituras de diferentes pensadores das ciências sociais brasileiros e estrangeiros, feitas nesse período, deram forma ao pensamento do autor de maneira frutífera. Em O Genocídio… propõe como tese um diagnóstico da sociedade brasileira e do papel da população negra naquela sociedade desmentindo (o texto fala de “demolir mitos anti-históricos”), em plena ditadura militar –quando, aliás, havia poucos dados estatísticos oficiais que manifestaram isso–, o famoso mito nacional da «Democracia Racial»: “Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão obvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais do governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do pais” (93)[i].
Esta denúncia é feita pelo autor através de um texto (e nesse ponto reside uma das suas contribuições mais férteis) que migra entre gêneros: entre o ensaio acadêmico (do qual, no entanto, tenta se separar permanentemente por considerar as produções acadêmicas dessa época como contribuições estéreis para os estudos da comunidade negra no Brasil) e o testemunho e os gêneros de denúncia, graças ao uso de um enunciador em primeira pessoa do plural. Assim, faz sua enunciação desde o coletivo dos sobreviventes da República de Palmares: “É nesta qualidade que me reconheço e me confirmo neste trabalho” (40).
O mito da «Democracia Racial» é apoiado pelos pensadores apologistas da miscigenação e da convivência harmoniosa entre os grupos raciais no Brasil, cujo iniciador foi Gilberto Freyre na década de 1930, com seu monumental trabalho Casa Grande e Senzala. Intelectuais que também apoiaram a noção, que Nascimento tenta desconstruir no livro, segundo a qual historicamente, os afrodescendentes no Brasil estavam em uma situação muito mais favorável que os negros e as negras nos Estados Unidos, devido ao suposto grau de “integração” da sociedade brasileira. Por esse motivo, alguns dos autores com quem discute furiosamente (eu me permito usar este advérbio já que o livro se constrói com um forte tom belicoso, irônico e denunciante) são Arthur Ramos, Édison Carneiro, Gilberto Freyre, Pierre Verger y as teses eugênicas de Nina Rodrigues e Silvio Romero. Ao mesmo tempo em que retoma, dialoga e pondera os estudos dos cientistas sociais Thales de Azevedo, Clóvis Moura, Florestan Fernandes, Anani Dzidzienyo, Thomas Skidmore, e Roger Bastide.
Essas leituras explicam uma das inovadoras contribuições do livro, que o autor começará a reivindicar em sua visão do persistente racismo brasileiro: uma visão pan-africana do fenômeno para a década de 1970. Ou seja, não se restringe estritamente aos limites impostos pela problemática racial nacional. Essas inovações são explicadas a partir da forte influência recebida da produção Frantz Fanon, produção muito traduzida e discutida nos Estados Unidos, que começa a ser referida em escritos de Nascimento após seu exílio em 1968. De fato, nos escritos da década de 1960, Abdias Nascimento traça influências entre os movimentos negros, analisa a conjuntura internacional, acentua os conceitos de negritude e cultura negra, menciona o gesto vexatório que supõe a origem da miscigenação brasileira, se refere às lutas de libertação africanas e ao crescimento do movimento negro nos Estados Unidos; mas não menciona o trabalho de Fanon, central na compreensão de O Genocidio…, onde há uma mudança de foco das ideias sobre a integração da população negra na sociedade brasileira, para a afirmação de uma identidade africana. Nesse conceito da identidade do oprimido colonizado culturalmente por seu opressor, como uma das maneiras pelas quais o genocídio dos negros é verificado, Abdias ensaiou sua conexão com as ideias de Fanon, principalmente com o trabalho Towards The African Revolution (1969): “O grupo social racializado tenta imitar o opressor e assim desracializar-se.” (38).[ii]
Essa mudança de foco também operou dentro da militância negra do MNU, que abandonou o culto da Mãe Preta, considerado um símbolo de passividade, e começou a reivindicar a data de 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, data que comemora o dia em que o líder quilombola Zumbí dos Palmares foi executado, em 1695. Neste período, a origem africana da população negra brasileira começou a ser recuperada (daí a denominação de “afrodescendente”) e começou a ser denunciada a miscigenação como uma treta ideológica alienante. Isto é assim, porque essa celebrada miscigenação passo a ser considerada signo do branqueamento da sociedade, o que implicava a promoção de um “genocídio” da população negra do país pela classe hegemônica branca.
Como resultado, o termo “genocídio” que assume ressonância após o episódio do Holocausto na Europa, é deslocado por Nascimento para pensar a história dos africanos escravizados e para atualizar o processo contemporâneo de integração da população negra à sociedade capitalista. O ensaio quebra a temporalidade para demonstrar que não houve verdadeiras mudanças nas dinâmicas de opressão. De fato, usar a palavra “genocídio”, à qual Nascimento dedica duas definições especiais nos epígrafes do livro, é um gesto provocativo para o leitor da época; gesto que foi reconhecido pelo sociólogo Florestan Fernandes. Ele sustenta, em seu prólogo, que a partir desse uso irrestrito, o termo genocídio, aplicado no livro ao problema racial brasileiro, “trata-se de uma palavra terrível e chocante para a hipocrisia conservadora” (21).
No entanto, aceita que é a palavra mais apropriada para explicar a violência sistemática, institucionalizada e silenciosa sofrida pela população negra no Brasil; documentada rigorosamente durante o período da Escravidão; agravada durante a Abolição; e intensificada, depois, com a segregação da população negra nas periferias da sociedade de classes, o que provoca uma terrível exposição ao extermínio moral e cultural (Fernandes, 1978).
Para alcançar sua tese central, no primeiro capítulo o livro propõe discutir com a visão laudatória da miscigenação apresentada por Gilberto Freyre (e com os estudos de Pierre Verger dos anos quarenta e cinquenta), a quem considera responsável pela criação, posterior, do mito nacional da Democracia Racial. Nascimento acusa Freyre de ter inventado, nos anos trinta, o conceito de Luso-tropicalismo, que afirmava que os portugueses tinham conseguido criar um paraíso racial no Brasil e na África, baseado em uma visão positiva da miscigenação, isto é, na concepção de uma “meta-raça” brasileira que é produto de uma síntese que supera o arianismo e a negritude.
No entanto, deve se notar que, no livro, Nascimento não reconhece nenhuma contribuição de Freyre aos estudos da população negra no Brasil, por exemplo, o fato de que ele fosse um pioneiro na reivindicação das contribuições do afro-brasileiro à cultura nacional, e quem quebrasse com o paradigma racista na interpretação social do Brasil, sempre baseado em teorias de origem européia, como o positivismo, o naturalismo, o evolucionismo-social e o social-darwinismo, das que as perspectivas eugênicas de Silvio Romero e Nina Rodriguez foram exemplo e com as quais Nascimento também discute, já que predisseram um futuro pouco promissório em termos sociais para o Brasil, na medida em que pregaram a superioridade da raça branca e, consequentemente, a inferioridade das raças negras, indígenas e mestiças. Isto é assim, porque para a posição de Nascimento, Freyre continua a ser racista, enquanto sua visão de harmonia racial esconde um paternalismo e um neo-colonialismo que apontam à extinção do componente negro da sociedade brasileira.
No segundo capítulo, Nascimento desmente o mito do senhor branco benevolente com seus escravos, uma visão estimulada pela Igreja Católica que buscava proteger moralmente a instituição da escravidão. Ao longo do livro, usa conceitos oficiais e dados históricos para reconstruir a dimensão que o comércio de escravos tinha no Brasil e as características dessa instituição, à qual Nascimento caracteriza como “O maior de todos os escândalos históricos” (48). Enfrentando a violência que documenta sobre a escravidão, o autor também registra com rigor histórico (através de dados de arquivo, manifestos de movimentos sociais e reuniões internacionais) e reivindica de uma maneira comparativa, as várias formas de resistência realizadas pelos escravos, do banzo (uma espécie de nostalgia e angústia dos escravos), à conformação dos quilombos (comunidades parecidas com cidadelas de negros que fugiram da escravidão e resistiram ao poder central). O quilombo mais famoso foi a República de Palmares (no século XVII), chamada de “Tróia Negra”, por ter resistido a mais de vinte expedições e cujo líder foi Zumbi dos Palmares, quem representa para Nascimento “a primeira e heróica manifestação de amor à liberdade em terras do Brasil” (60).
Nos capítulos seguintes, Nascimento começa a desenvolver sua tese central, listando as várias estratégias que levaram ao genocídio dos negros do Brasil. A primeira foi a exploração sexual de mulheres negras pelos senhores brancos, o que gerou mulatos e mulatas brasileiras, estereótipo da exploração sexual na pós-abolição do Brasil: “O processo de mulatização, apoiado na exploração sexual da negra, retrata um fenômeno de puro e simples genocídio” (69). Além disso, ele denuncia o envio de negros libertos para as frentes de batalha, especialmente para a Guerra do Paraguai (1865-1870), na qual foram exterminados. Outras estratégias foram as de limitar as taxas de fertilidade da população negra e a orientação racista das políticas migratórias que estimulavam a chegada exclusiva de europeus brancos. Nesse ponto, Nascimento relativiza os dados históricos fornecidos pelos censos nacionais que mostram uma diminuição na população negra, observando que “eles mostram um retrato fortemente distorcido da realidade, já que conhecemos as pressões sociais a que estão submetidos os negros no Brasil, coação capaz de produzir a subcultura que os leva a uma identificação com o branco” (74). Este «desaparecimento» de informações confiáveis sobre a origem racial da cidadania brasileira é, segundo Nascimento, outra estratégia de branqueamento realizada pela população branca no Brasil que negou aos negros a possibilidade de auto-afirmação, “subtraindo-lhe os meios de identificação racial” (79).
Por outro lado, o autor analisa, em tempos mais recentes, as deficiências da integração social e econômica da população negra no Brasil; mostra através de dados estatísticos que, mesmo nos estados em que a maioria da população é negra, mulheres, homens e crianças negros estão marginalizados do sistema educativo e em constante desvantagem econômica. Em termos habitacionais, também, a população negra no Brasil é segregada para as periferias das grandes cidades, primeiro para os mocambos e depois para as favelas modernas.
Um gesto relevante a considerar durante a leitura do livro é que Nascimento não usa apenas fontes históricas e obras de sociólogos e antropólogos, mas também fontes literárias e culturais, já que seu principal interesse reside na construção de uma identidade afro-centrada, e para ele, a religião, a literatura, a música e as artes são veículos de afirmação da identidade e da resistência cultural. Interessante é o capítulo dedicado à religião do Candomblé, pois é para Nascimento “a principal trincheira da resistência cultural do africano, e o ventre gerador da arte afro-brasileira” (103). Por essa razão, ele rejeita a ideia do candomblé como uma religião que foi sincretizada com a católica, porque o candomblé teve que se hibridar forçadamente como estratégia de sobrevivência. Pelo contrário, para Nascimento, o sincretismo só caracteriza as relações estabelecidas entre as diferentes culturas africanas que chegaram ao território brasileiro (Yoruba, Bantu, Ketu, etc.) e as relações entre estas e as religiões dos indígenas brasileiros. As relações estabelecidas entre a cultura afro-brasileira e a cultura branca são caracterizadas a partir do conceito de folclorização, através dos procedimentos da formação de estereótipos e mercantilização: “Cultura africana posta de lado como simples folclore se torna em instrumento mortal no esquema de imobilização e fossilização dos seus elementos vitais. Uma sutil forma de etnocídio.” (119)
Como escritor, jornalista, dramaturgo e poeta, Nascimento se preocupa pelo modo como a literatura brasileira ecoou esse processo de folclorização e domesticação de negras e negros. Entre outros gestos, denuncia abertamente a literatura folclórica do Jorge Amado. Talvez esses capítulos sejam a maior novidade em relação a outros estudos sociológicos sobre a questão racial no Brasil na década de 1970. Nascimento rastreia no cânone da literatura brasileira os autores negros que “tentaram exorcizar sua negrura” (124) copiando modelos estéticos europeus como Gregório de Matos, Cruz e Sousa y o escritor nacional, Machado de Assis, quem “não manteve apenas fidelidade aos padrões e estilos metropolitanos: a rendição de Machado foi tão extrema a ponto de transformá-lo num verdadeiro mestre que aperfeiçoou, enriqueceu e expandiu a língua portuguesa utilizada na criação artística tanto no Brasil quanto em Portugal.” (126) No entanto, ele distingue alguns escritores que não se equipararam à cultura branca e que serviram de base para o contra-cânone literário que, a partir da década de 1980, começaram a construir movimentos afro-brasileiros. Tais são os casos de Luis Gama (ex-escravo e precursor da poesia negra revolucionária), Lima Barreto (que se dedicou a retratar o ambiente suburbano do Rio de Janeiro no final do século XIX), Carolina Maria de Jesus (favelada de São Paulo que escreveu em 1960 seus diários sob o título Quarto de despejo, que livro que se tornou um best-seller na época) e as produções dramatúrgicas do TEN.
O Teatro Experimental do Negro merece um capítulo especial no livro de Nascimento, pois representa um dos muitos movimentos de resistência cultural afro-brasileira que o autor destaca como contrapartida do mito da Democracia Racial. O TEN teve um projeto artístico, mas também pedagógico (alfabetização e formação política) para a população negra pobre do Brasil (favelados, empregadas domésticas, trabalhadores não qualificados, praticantes de candomblé), já que não só se dedicou a formar atores dramáticos negros (os primeiros no Brasil), mas também estimulou a criação de peças baseadas na experiência afro-brasileira, e criou o jornal O Quilombo com o objetivo de conscientizar sobre o problema racial no Brasil e desmascarar a literatura que se concentrou nas figuras negras como “um exercício esteticista ou diversionista” (129). Junto com as novidades trazidas pelo TEN, Nascimento reivindica as contribuições da Frente Negra Brasileira, dos vários grupos de pesquisa que foram formados em universidades públicas para estudar o problema racial, dos encontros nacionais que estavam ocorrendo durante os anos sessenta e setenta, para concluir com o Manifesto que deu origem, em 1978, ao Movimento Negro Unificado: “Carta Aberta a População CONTRA O RACISMO”.
Para concluir, Nascimento propõe um projeto de ação para combater este modelo de racismo mascarado, mas esse plano de ação não envolve a luta armada, considerada “a inviabilidade de uma imediata revolução no Brasil” (137). O qual constitui um dos momentos mais significativos da obra, considerando o contexto da violência política mundial em que foi escrito. Nascimento não estimula a radicalização política contra o problema racial (embora ele reconheça essa possibilidade), mas opta por uma série de propostas/reformas que serão promovidas mais tarde, muitas delas, por ele mesmo no seu papel de legislador. Entre essas reivindicações ao Governo Federal destacam as de provocar a discussão aberta do problema racial no Brasil e financiar centros de estudos sobre o assunto; localizar e publicar todos os arquivos disponíveis sobre escravidão; incluir a questão da raça e da etnia nos censos e em todos os dados estatísticos divulgados pelo governo; incluir a História da África nos currículos de todos os níveis educativos; compensar economicamente todos os descendentes de africanos através de um fundo público; redistribuir equitativamente a renda no país; treinar oficiais negros em várias áreas públicas; e concretizar a aplicação efetiva da lei Alfonso Arinos contra a discriminação.
Todas essas propostas com as quais conclui O Genocídio do Negro Brasileiro mostram a atualidade de sua reedição e a relevância que ainda têm, no Brasil e no mundo, os debates sobre a representatividade, a cidadania e a agencia efetiva, isto é, econômica e simbólica, e não meramente discursiva, das populações negras. Principalmente, quando no Brasil, apesar das tentativas realizadas pelos movimentos afro-brasileiros, não foi possível reduzir os números aberrantes publicados por vários órgãos públicos em 2016, demonstrando que todos os anos morrem 23.100 jovens negros com idades entre os 15 e os 29 anos, 63 por dia, ou seja, um a cada 23 minutos; e que a principal causa dessas mortes é o assassinato.
Por esta razão, se, no final da década de 1970, foi chocante usar a palavra genocídio para pensar sobre o racismo no Brasil, neste momento é um conceito que tem ganho destaque nas ações dos grupos afro-brasileiros. Além disso, o uso deste termo é agora apoiado por uma multiplicidade de dados e estudos empíricos estimulados pela maior presença da população negra nas universidades (graças ao Programa ProUni, Universidade para Todos) e no poder público, por um maior processo de concientização de que toda identidade é racializada. Esses movimentos continuam a denunciar o mito da Democracia Racial e reivindicam, assim como o Nascimento na década de 1970, uma democracia pluri-racial, não apenas uma segunda abolição.
[i] As citações correspondem à seguinte edição: Nascimento do, Abdias. O Genocidio do Negro Braisleiro. Processo dum racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
[ii] FANON, F. Toward the African Revolution. Grove Press, New York, 1969.