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Políticas da memória na arte contemporânea: «Imemorial», de Rosângela Rennó (POR)

 Por:  Florencia Garramuño

Tradução: Martina Altalef

A partir da mostra fotográfica Imemorial, de Rosângela Rennó, a crítica e pesquisadora Florencia Garramuño reflete sobre as formas de evocar a memória, apostando em aquelas obras que trabalhem com os «restos e vestígios que, ao invés de lembrar o passado, ativam uma sobrevivência frequentemente fantasmal e paradoxal»

Olho Brasília como olho Roma:

Brasília começou com uma simplificação final de ruínas.

Clarice Lispector

Muitas são as práticas contemporâneas que trabalham com restos que provêm do passado em composições e estruturas que, ao tempo que trabalham com a presença desses restos, parecem se negar a uma detalhada reconstrução dos fatos ou acontecimentos, nos quais esses vestígios haviam figurado. Na atualização desses restos enquanto ruína ou sobrevivência, estas práticas parecem procurar a potência estética de uma imagem do passado, mais que sua reconstrução memorialista. O retorno desses restos e resíduos de um passado vem, nelas, interromper uma noção de história lineal e evolutiva, e interrogar o tempo pressente –o contemporâneo– compreendendo que os limites entre as épocas são porosos e que o próprio pressente –a atualidade– se encontra construído por camadas de histórias passadas muitas vezes truncadas, promessas não cumpridas e futuros a desafiar. A montagem de tempos heterogêneos segundo a qual essas práticas se estruturam tem, eu penso, uma potência especial que quero tentar descrever.

Colocadas contra o pano de fundo de toda uma linha da produção estética latino-americana, que nas últimas décadas tem se encontradomarcada por uma política da memória e da reconstrução da recordação–por complexa, fragmentária ou desencantada que for–, estas práticas parecem escolher, frente à reconstrução que a memória supõe, o trabalho com restos e vestígios que, ao invés de lembrar o passado, ativa uma sobrevivência frequentemente fantasmal e paradoxal.

Rosângela Rennó é uma artista brasileira que tem trabalhadocom essas formas ambivalentes da memória. Ao longo dos últimos anos, tem realizado um trabalho arqueológico com a fotografia, de intensas repercussões para uma discussão sobre políticas da memória, a partir de seu trabalho com arquivos, documentos e coleções.

Imemorial, de 1994, foi apresentada pela primeira vez em uma exposição intitulada Revendo Brasília,curada por AlfonsHug, queprocurou (cito o texto do curador) “uma abordagem crítica da capital brasileira, aproveitando os recursos da fotografia artística” (Melendi, 23). Tratava-se de revisar, a través da fotografia, as peculiaridades de uma cidade que foi proposta –segundo a ideia de Lúcio Costa– como um centro irradiador de desenvolvimento e de cultura para o Brasil, sustentada na utopia de uma revolução estética que foi truncada pelas dificuldades de uma modernidade dependente e por uma ditadura militar que, pouco menos de uma década após sua fundação, conduziu o país pelo caminho de uma violenta modernização autoritária. As imagens e os discursos dos deputados brasileiros no congresso de Brasília em 2016, e aquelas ainda mais recentes, resultam novas vicissitudes dessa confluência de tempos heterogêneos no cenário de Brasília. Junto com a instalação de Rennó, Revendo Brasília incluiu fotografias de Andreas Gursky, UrichGörlich, Thomas Ruff, Mário Cravo Neto e Miguel Rio Branco.

Para a instalação, Rennó trabalhou com o Projeto História Oral do Arquivo Público do Distrito Federal e revisou os arquivos da companhia Novacap, responsável pela construção da capital brasileira. Deste último arquivo, Rennó retirou fotografias que identificavam aos trabalhadores da construção –muitos deles crianças–, fotografou elas de novo e as ampliou e interveio –revelou algumas delas com um película escura– para posteriormente dispor elas no espaço em dois eixos, um vertical e outro horizontal, que repetiam a cruz do plano imaginado por Lúcio Costa com as fotografias dos corpos de aqueles que fizeram possível essa construção.

São várias as questões que me interessam aqui: o trabalho com o arquivo, a recuperação de rostos desconhecidos e esquecidos e seu posterior apagamento ou veladura –o que leva a pensar em um trabalho, mais do que com a memória, com a ausência e a amnésia– e a utilização de restos e resíduos (aquilo que sobrouda construção) cuja obstinada presença na prática artística, no entanto, parece se negar e se resistir a toda redenção e restituição.

Entreo esquecimento e a presença

Na sua pesquisa para a elaboração de Imemorial, Rennó soubedo altíssimo número de operários mortos durante a construção de Brasília, especialmente no massacre de Pacheco, mas também em várias outras circunstâncias, por causa das más condições laborais. Na instalação, as imagens ampliadas (60 x 40 x 2cm) dos crachás desses operários são colocadas no chão e na parede, sobre bandejas de ferro. As fotos dos mortos foram apresentadas no chão em película ortocromática, preto sobre preto, o que produz que os traçosapenas se vislumbrem. No entanto, a película que Rennó aplicou para gerar essa veladura provoca uma sombra prateada que irradia um brilho especial, persistente. E fascinante, eu diria. Na parede e em posição vertical, Rennó dispôs as fotografias dos operários ainda vivos. Em nenhum dos casos aparecem os nomes dos trabalhadores, nem suas histórias;só o número que refere a data de sua contratação serve como identificação na instalação. Colocadas contra o chão como se fossem túmulos, as fotografias intervindas por Rennó irradiam uma pulsação luminosa que, em sua renuncia a restituir a memória individual desses trabalhadores, repõe a presença daqueles que construíram Brasília e que foram sepultados em seus cimentos.

Como destacou Maria Angélica Melendi (2000), em Imemoriale em outras obras de Rennó, “as fotos que a artista arquiva não resgatam a memória, mas testemunham o esquecimento” (Melendi, 7). Ao mesmo tempo que desestabiliza a autoridade da fotografia como tecnologia da memória e da recordação(Merewether, 161), a instalação de Rennó trabalha com a persistência espectral de uma história que, embora permaneça no esquecimento, interrompe a cronologia utópica de Brasília. Com as fotografias anônimas dos operários mortos na construção, Rennó tem construído um anti-monumento cujo sentido foi resumido por Paulo Herkenhoff de modo iluminador: “A obra de Rennótrabalhaentão sobre uma área de recalque. Seu projeto não é apenas o mais óbvio, que seria iluminar o terreno social, mas, sobretudo mapear a sombra” (Herkenhoff, 1996, 41).

Essa sombra resulta efetiva para evocar os fantasmas do passado sem procurar nenhuma recuperação nem reanimação. Ao utilizar essas antigas fotografias e fazer evidente o novo valor que a intervenção da artista produz sobre esses restos, Imemorial procura o sentido latente de um passado que repercute sobre o presente, inclusive quando não se quer ou não se pode lembrar. Engajada em revelar os processos amnésicos que corroem as imagens de nossa cultura, a ativação da sobrevivência do passado ilumina com sua sombra paradoxal os projetos truncadosdo passado. Outra funcionalidadedo passado e de seus restos emerge de suas construções em palimpsestos, nos quais se misturamtemporalidades, perturbandoas legibilidades do arquivo de uma cultura.

Formas da memória e formas da sobrevivência: fazer falar aos fantasmas

Em “Presentes Pasados” Andreas Huyssenchamou a atenção sobre a possibilidade de que o “boom” da memória que iniciou-se em 1970 fosse acompanhado – e até certo ponto tivesse produzido – um paralelo “boom” do esquecimento (Huyssen, 22).

Mesmo assim, a obsessão pelo passado e o império da memória que abrumaram muitas construções e práticas culturais na América Latina também tem sido acompanhada por um tipo de elaboração diferente do passado, que vale a pena interrogar, porque pode dizer algo sobre o modo em que habita, em muitas versões da estética contemporânea, uma lógica da presença que desloca toda pulsão de representação e de restituição. Junto à necessidade de lembrar, outros modos de potenciar a ativação dos restos do passado estão encerrados na forma em que estas práticas trabalham. A presença material – captada em objetos e discursos fisicamente presentes – se diferencia de outras formas de representação da memória e da história. Elas exibem uma montagem de tempos heterogêneos que evidenciama porosidade das épocas e ativam um poder de sobrevivência de intenso poder evocativo e perturbador. DidiHuberman, que tem trabalhado insistentemente em vários livros sobre o conceito de sobrevivência a partir de pensadores como Walter Benjamin e AbyWarburg, salientou essas “pequenas luzes” do passado que reaparecem nas sobrevivências:

As sobrevivências não prometem nenhuma ressurreição (haveria algum sentido em esperar de um fantasma que ele ressuscite?). Elas são apenas lampejos passeando nas trevas, em nenhum caso o acontecimento de uma grande ‘luz de toda luz’. Porque elas nos ensinam que a destruição nunca é absoluta – mesmo que fosse ela contínua -, as sobrevivências nos dispensam justamente da crença de que uma ‘última’ revelação ou uma salvação ‘final’ sejam necessárias à nossa liberdade” (Didi-Huberman, 2011, 84).

A maneira em que práticas como as de Rennó trabalham com o arquivo, ao fazer presentes esses restos, resulta uma operação para pensar novos modos de refletir sobre os fatos e os acontecimentos, históricos ou contemporâneos. Mais do que questionar a história recebida, para além do desejo de exibir a impossibilidade de reconstruir o passado, para além, inclusive, de uma reflexão sobre o passado e bem longe de demonstrar – mais uma vez – a impossibilidade de uma totalidade do sentido, a lógica da sobrevivência trabalha nestas obras contemporâneas com uma noção de presença post-fundacional que coloca no presente sua pedra-de-toque, que localiza a sobrevivência do passado na contemporaneidade e se pergunta pelo modo de lidar, no presente, com o esquecimento, os restos, a amnésia e os vestígios vivos, escapando dessa maneira da teleologia da história e recuperando, de alguma forma, a potência do passado e sua sobrevivência no pressente.

Em Espectros de Marx, Jacques Derrida propôs anecessidade de

aprender a viver com os fantasmas, na entrevista, a companhia ou a aprendizagem, no comércio sem comércio com e dos fantasmas. A viver de outra maneira. E melhor. Não melhor: mais justamente. Mas com eles. Não há ser-com o outro, não há socius sem este com – aí que faz ao ser-com em geral mais enigmático que nunca. E esse ser-com-os espectros seria também, não somente, mas também, uma política da memória, da herança e das gerações.

Temos que falar do fantasma, até ao fantasma e com ele a partir do momento em que nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, nem pensável, nem justa, se não reconhece como seu princípio o respeito por esses outros que já não são ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos, tanto se morreram como se ainda não tem nascido” (Derrida, 12).

É nesse mesmo sentido que uma política da sobrevivência como a que habita estas práticas abre o presente a sua disjunção, manifesta a não contemporaneidade do presente consigo mesmo, e nos permite falar com os – nossos – fantasmas do passado. Elas nos ensinam, como queria Walter Benjamin, que nada do que tem acontecido alguma vez tem se perdido para a história.