Tarsila em seus vernissages [PORT]

Por: Carolina Casarin[1]

 Imagen: Autorretrato ou Le Manteau rouge, Tarsila do Amaral (1923)

Neste artigo, a desenhadora, editora e professora brasileira Carolina Casarin faz uma análise dos trajes da Maison Paul Poiret usados por Tarsila do Amaral em dois vernissages: em 1926, na abertura de sua primeira individual, em Paris, e em 1929, na inauguração de sua primeira exposição no Brasil. Procura analisar sua aparência, relacionando suas escolhas vestimentares com seu percurso como artista brasileira y moderna.


 

 

 

  1. Introdução

Segunda-feira, 7 de junho de 1926. A pintora brasileira Tarsila do Amaral inaugurou sua primeira exposição individual, na Galeria Percier, em Paris. A mostra fora longamente planejada por Tarsila, o poeta Oswald de Andrade, que na altura era seu marido, e outro poeta, o franco-suíço Blaise Cendrars, que desde 1923 era amigo do casal de modernistas brasileiros. Na edição número 401 da revista Para Todos, de 21 de agosto de 1926, é publicada uma fotografia de Tarsila do Amaral no dia de seu vernissage, diante da obra Morro da favela (1924). Essa fotografia de Tarsila, vestida com o modelo “Écossais”, da maison Paul Poiret, é de autoria da fotógrafa norte-americana Thérèse Bonney. Entre 18 de junho e 2 de julho de 1928 a artista realizara ainda uma segunda individual, também na Galeria Percier, mas desse vernissage não conheço nenhum registro fotográfico.

Figura 1: Tarsila na abertura de sua primeira individual, 1926
 Tarsila 1926 2 portada
“Tarsila. Pintora brasileira, moderníssima, que fez, com êxito,

uma exposição em Paris, na Galerie Percier”.

Fonte: PARA TODOS, 1926, p. 42.

No sábado, 20 de julho de 1929, é inaugurada a primeira exposição de Tarsila do Amaral no Brasil, no Palace Hotel, à avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Em setembro do mesmo ano a mostra seguiu para São Paulo, no edifício Glória, à rua Barão de Itapetininga. O primeiro vernissage brasileiro também foi registrado na revista Para Todos, número 554, de 27 de julho de 1929. A fotografia mostra Tarsila centralizada diante de um grupo de aproximadamente 30 pessoas. Ao fundo, alguns de seus quadros, entre eles, Anjos (1924), A família (1925) e Floresta (1929). Tarsila do Amaral, nessa ocasião, está vestida de novo chez Poiret. Dessa vez, o vestido “Flûte”.

Figura 2: Tarsila e amigos no vernissage de sua primeira exposição no Brasil, 1929
 Tarsila 1929 2
“Sábado da outra semana, no Parque (sic) Hotel, quando Tarsila inaugurou a sua primeira

exposição no Brasil. Todo o Rio de Janeiro inteligente e elegante esteve lá. E lá tem voltado.

Nunca uma mostra de arte interessou tanto a cidade. Os amigos da pintora,

que tanto pediram a vinda dela à terra carioca, estão contentes.”

Fonte: PARA TODOS, 1929, p. 14.

Somados aos registros fotográficos publicados na Para Todos, existe um conjunto de fontes variadas que possibilita a análise da aparência de Tarsila do Amaral nos dois vernissages. No esforço de elaborar uma história do vestuário e da moda que fuja das narrativas superficiais, “a escolha diversificada de documentos” (VOLPI, 2013, p. 1) faz parte de um método que privilegia o cruzamento de diferentes tipos de fontes, visuais, escritas e materiais, levando “o historiador a problematizar uma nova tipologia de fontes iconográficas (pinturas, estampas, gravuras e fotografias), associando-as aos documentos de arquivo (de notários, comerciantes, fabricantes e famílias) e aos trajes” (VOLPI, 2013, p. 1).

Além da imagem de 1926, são conhecidas outras duas fotografias de Tarsila com o vestido “Écossais”. Um registro de Flávio de Carvalho na ocasião em que a artista deu uma conferência sobre o cartaz soviético no Clube dos Artistas Modernos de São Paulo, em 1933,[2] e o retrato de Tarsila em seu título de eleitor de 1936.[3] O modelo “Écossais” foi depositado no Conseil des Prud’hommes[4] de Paris, em 2 de março de 1926 por “Maison Paul Poiret Société Anonyme”, onde está registrado o título da roupa. Existe também uma referência discursiva de Tarsila ao traje, em entrevista à revista Veja em fevereiro de 1972.

O vestido e a jaqueta “Flûte” constam no recibo a “Madame Tarsila de Andrade” de 17 de julho de 1928. Um exemplar do traje “Flûte” está guardado no museu Victoria & Albert, de Londres, e foi essa peça que tornou possível relacionar a fotografia de Tarsila no vernissage de julho de 1929 e a referência no recibo, reunindo os três tipos de vestuário propostos por Roland Barthes no livro Sistema da moda, o vestuário-imagem, o escrito e o real (BARTHES, 2009).

Esse rico e variado conjunto de fontes permite uma análise acurada da aparência e dos trajes de Tarsila do Amaral nos dois vernissages. Segundo Barthes, o vestuário-imagem e o escrito remetem ao vestuário real, são equivalentes, mas não idênticos, como adverte o autor (BARTHES, 2009, p. 21). Estamos lidando com três estruturas e matérias diferentes. A estrutura plástica, das formas, no vestuário-imagem; a verbal, vocabular, no escrito; e a tecnológica no vestuário real, quando “tem-se uma estrutura que se constitui no nível da matéria e de suas transformações, e não de suas representações ou de suas significações” (BARTHES, 2009, p. 22). A partir desse método de análise, que procura organizar as fontes de acordo com os três tipos de vestuário, é possível mobilizar e cruzar informações relevantes, tais como títulos das roupas, seus graus de formalidade, registros dos modelos, valores, ocasiões em que os trajes foram usados por Tarsila, silhuetas, aspectos materiais. O objetivo desse artigo é, então, analisar a aparência de Tarsila ao relacionar suas escolhas vestimentares à sua trajetória, observando o papel da alta-costura na construção e na legitimação de seu lugar de mulher, artista, brasileira e moderna.

  1. “Écossais” e “Flûte”

A palavra écossais, que remete ao substantivo pátrio escocês, significa também o tecido xadrez. Segundo o Dictionnaire international de la mode, o écossais é um

tecido quadriculado multicolorido, executado em armação tela ou sarja, e fabricado a partir de diversos materiais. A mesma correspondência de cores será usada na urdidura e na trama. O termo provém dos clãs escoceses, grupos que, afim de se reconhecerem, têm cada um seus próprios tartans, ou motivos xadrezes, formados por um tecido quadriculado com cores e linhas específicas. O tartan funciona, assim, como uma espécie de signo de identidade do clã, que permite distinguir os indivíduos.[5] (REMAURY; KAMITSIS, 2004, p. 192)

O xadrez esteve em alta nas criações da alta-costura francesa ao longo da década de 1920, tendo essa moda se iniciado, na França, por conta dos romances de Walter Scott, na primeira metade do século XIX.[6] Flûte, por sua vez, é um substantivo feminino, com vários sentidos. Significa flauta; taça; um tipo de pão alongado, como uma baguete; e, numa acepção familiar, perna, “les flûtes”, quando usado no plural.

Do traje “Écossais”, não sabemos exatamente as cores, mas é possível especular a partir de entrevista dada por Tarsila do Amaral à revista Veja em fevereiro de 1972, quando a artista se refere a um vestido parecido com o da exposição de 1926, descrevendo-o como “um vestido lindíssimo, uma seda meio xadrez, com mangas bufantes e dois laços de fita bem largos, azuis” (RIBEIRO, 1972). Diz a artista:

Quando meu casamento com o Oswald, foi até um casamento de luxo, o Washington Luís esteve presente. Falavam de mim, de meus muitos amores!, até de lançadora de modas eu fui chamada. E claro, porque cada vez que eu voltava da Europa eu trazia novidades, não é mesmo? Eu estava uma vez com um vestido lindíssimo, uma seda meio xadrez, com mangas bufantes e dois laços de fita bem largos, azuis, sabe? Foi o vestido que eu escolhi para o vernissage de obras minhas num conjunto de muitas salas, na rua Barão de Itapetininga, eu estava ali esperando os visitantes. Aí eu vi assim uma porção mesmo de rapazes que vinham na minha direção, como eu estava na porta eu perguntei: “Os senhores querem entrar?”, parecia que era o que eles queriam mesmo, e eu os recebi com muita cordialidade, convidei, mal eu sabia o que eles queriam fazer: todos vieram com giletes no bolso para arrasar com tudo o que eu tinha feito! Mas acho que me estranharam de ver num vestido assim tão bonito e não conseguiram o que queriam, não. (RIBEIRO, 1972)

É engraçado a artista espantar-se com ser chamada de “lançadora de modas”, se em seguida ela mesma afirma que trazia regularmente novidades da Europa. De fato, ela foi assídua frequentadora do luxo da alta-costura. O guarda-roupa de Tarsila do Amaral está repleto de trajes e peças de Paul Poiret, usado em diversas ocasiões de sua vida, na esfera da intimidade e publicamente. O relato de Tarsila sobre sua fama de vanguarda na moda confirma o extraordinário de sua aparência no contexto brasileiro. A própria situação narrada pela artista, de que os rapazes se arrependeram da ideia de rasgar seus quadros por causa do impacto de seu traje, é significativa nesse sentido, demonstrando essa espécie de fascínio que a presença de Tarsila devia causar. Analisando a narrativa da artista, é ainda interessante comparar como ela descreve a reação do público diante de sua obra e de sua aparência. Se seus quadros despertaram a raiva de um grupo de moleques estudantes de belas artes, o poder de sua presença, de sua aparência, feita chez Poiret, foi capaz de lhes fornecer a beleza que eles desejavam. Tudo indica que os moços atrevidos se viram diante do traje “Écossais”, usado pela artista novamente no vernissage de sua exposição de setembro de 1929 em São Paulo, à rua Barão de Itapetininga, no edifício Glória. Segundo Nádia Battella Gotlib, “a exposição provoca também reações calorosas. Os estudantes da Escola de Belas-Artes, indignados, ameaçam rasgar as telas. Mas desistem da idéia” (GOTLIB, 2003, p. 157).

Observando a imagem de Tarsila na Galeria Percier, nota-se, na roupa, alguma diferença de luz, o que leva a pensar que se trata de um tecido brilhoso, semelhante à seda, talvez um tafetá de seda xadrez,[7] que tem a iridescência como qualidade. Algumas semelhanças são evidentes entre o traje de 1926 e o vestido relatado por Tarsila. Além do xadrez, as mangas bufantes e os dois laços de fita, bem largos, situados acima do cotovelo. O traje obedece a uma padronização: a disposição do tecido e do trabalho casa de abelha[8] repete-se nas mangas e no conjunto corpo e saia. As mangas compridas, justas entre os ombros e o cotovelo, tornam-se bufantes a partir desse ponto, na direção do punho, terminando bojudas. O tecido da gola e dos punhos parece ser o mesmo. O que marca a transição do justo para o volumoso, assim como acontece entre o corpo do vestido e a saia, é o trabalho casa de abelha. A parte superior das mangas, nos braços, é justa e o tecido está disposto de modo enviesado, suas faixas deslocadas transversalmente. O corpo do vestido segue esse padrão: tecido enviesado e justo na parte superior, alteração de volume marcada pelo trabalho casa de abelha, tecido reto e volumoso na parte inferior. O corte enviesado favorece o caimento das roupas e promove o contorno da forma do corpo, porque o tecido ganha em elasticidade. O vestido tem um fechamento frontal numa longa fileira vertical de dezesseis botões. No corpo de Tarsila, a cintura, reforçada por um viés, está deslocada, um pouco abaixo do quadril, diferente do que aparece nas outras duas reproduções do traje “Écossais”, em que a cintura parece se fixar na linha do quadril. A forma plissada da saia é efeito do tecido franzido por conta da técnica do trabalho casa de abelha, que cobre toda a circunferência.

Diferente do “Écossais”, que conhecemos somente por meio de imagens e discursos, do vestido “Flûte” temos informações visuais, textuais e materiais. Vestido e jaqueta com o mesmo título estão entre os itens adquiridos por Tarsila do Amaral listados na fatura do dia 17 de julho de 1928. As peças “Flûte”, mais os vestidos “Printaniere”, “Dieppe” e “Coquille”, custaram juntas 15.000 francos, o que hoje equivaleria a algo em torno de 44.000 reais.[9] Para que exista um termo de comparação com os valores da época, basta dizer que, na década de 1920, provavelmente ainda na segunda metade, os artistas contemplados com a bolsa do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, para estudos em Paris, recebiam uma “pensão de quinhentos francos mensais, passagem de ida e volta de navio, em primeira classe, e uma pequena ajuda de custo inicial, tendo esses valores sofrido sucessivos reajustes até 1930” (MICELI, 2003, p. 26).

No museu Victoria & Albert, em Londres, existe um exemplar do modelo “Flûte”, código T.341-1974. De acordo com as informações museológicas disponibilizadas no site, o vestido “La Flute” data de 1924, foi feito por Paul Poiret e é descrito como “vestido de cetim guarnecido com aplicação de adereço dourado e forrado parcialmente com chiffon de seda”.[10] Pela data de compra do recibo de Tarsila, 23 de junho de 1928, esse vestido não é de 1924. O mais provável é que seja da primeira metade de 28, coleção primavera-verão. O “Flûte” é um vestido tubular de cetim de seda, a parte superior é branca e a inferior, preta. O exemplar que eu consultei na reserva técnica do Victoria & Albert tinha em torno de 108 cm de comprimento. O decote do vestido é quadrado e as mangas, muito longas, medem a partir da costura dos ombros pouco mais de 60 cm e têm uma abertura no final. Na fotografia em que Tarsila do Amaral está vestida com o “Flûte” dá para ver que as mangas se prolongam para além do punho, terminando no início das mãos, e parece que a artista usa duas pulseiras por cima das mangas, uma em cada braço. O bordado de fios dourados está aplicado no centro do traje, fixado com costura manual. Nas costas, o recorte que liga o corpo do vestido, branco, à saia, preta, é muito bonito, um arabesco elegante e sofisticado. É um traje ajustado e o fechamento se dá por aberturas nas duas laterais, que se unem por meio de colchetes internos. Logo abaixo do bordado, na frente saia, abre-se uma prega macho que contribui para o movimento e a mobilidade da mulher vestida com o “Flûte”. Flauta, taça, seja como for, o nome remete a uma forma alongada, tubular, exatamente como é a silhueta do vestido.

Os autores Gonzalo Aguilar e Mario Cámara chamam atenção para a “dimensão performática” (AGUILAR; CÁMARA, 2017, p. 9) da aparência dos literatos, parte fundamental no entendimento do percurso dos artistas, especialmente evidente nos eventos públicos, como é o caso dos vernissages de Tarsila.

Em vez de observar os procedimentos textuais ou as descrições sociológicas, nos detemos em aspectos que a crítica considerou marginais ou simplesmente acessórios. De que modo os corpos atuam na literatura? Como é o espaço material em que esses textos ou discursos ocorrem? Quais são as inflexões da voz? Como um escritor se apresenta em público e como – e até que ponto – gere sua própria imagem? Em última instância, interessa-nos pensar os signos que a dimensão performática do literário nos traz. (AGUILAR; CÁMARA, 2017, p. 10)[11]

É claro que podemos alargar a reflexão e pensar não apenas nos escritores, mas também nos artistas. As roupas fazem parte desses signos que a dimensão performática dos corpos engendra. Tarsila do Amaral investiu maciçamente e de modo consciente em sua aparência, dedicando-se ao “produto artístico que é o eu” (WILSON, 1989, p. 192).

Foi explorando o imaginário do exótico que Tarsila e Oswald conquistaram suas posições em Paris. Se o casal Tarsiwald foi também uma grife, como disse Sergio Miceli,[12] o produto “artístico-literário semi-empresarial” (MICELI, 1997, p. 1) foi o projeto pau-brasil. Por outro lado, a primeira individual de Tarsila no Brasil só ocorrera depois de duas exposições em Paris. A artista já havia legitimado suficientemente seu lugar como “pintora brasileira, moderníssima” (PARA TODOS, 1926, p. 42). Sete anos haviam se passado desde a Semana de Arte Moderna e, apesar das violentas críticas que a exposição recebera de alguns na imprensa brasileira, Tarsila “expõe 35 telas que encontram um ambiente artístico já mais maduro e desenvolvido. Não é um fato isolado essa exposição, como fora a de Anita, nos idos de 1917” (GOTLIB, 2003, p. 156). Tanto é assim que “todo o Rio de Janeiro inteligente e elegante esteve” (PARA TODOS, 1929, p. 14) no vernissage.

Nesse sentido, é interessante comparar os catálogos das duas exposições e as obras apresentadas. Em 1926, “as dezessete telas expostas são da fase pau-brasil, com exceção de A Negra, anterior, de 1923” (GOTLIB, p. 130).  No catálogo, com poemas de Blaise Cendrars, foram reproduzidas as obras Anjos (1924), São Paulo (1924) e Paisagem com touro (c. 1925). Na exposição de 1929,

um catálogo alentado (o mesmo a ser apresentado a seguir em São Paulo) é preparado por Geraldo Ferraz, com textos de críticas parisienses das exposições de 1926 e 28, além de extratos da imprensa brasileira. Fora os desenhos, são 35 quadros, de 1923 a 1929. Para Tarsila essa exposição, pelo que se depreende, é uma aguardada apresentação total, no Brasil, de seu rendimento como artista já apreciada em Paris. (AMARAL, 2010, p. 309)

Entre o “Écossais”, escolhido por Tarsila do Amaral para o vernissage em Paris, na Galeria Percier, em 1926, e o “Flûte”, o traje da abertura da exposição no Palace Hotel, no Rio de Janeiro, em 29, existem diferenças significativas. A começar pelos tecidos, o primeiro, xadrez, estampado, o segundo com cores sólidas, branco e preto, liso; a saia do “Écossais” é longa e volumosa, do “Flûte”, curta e estreita; o vestido de 1926 tem uma silhueta levemente piramidal, lembrando o robe de style, enquanto o de 29 é tubular, remetendo ao estilo garçonne, retilíneo; um é composto por adereços, laços, golas, punhos, mangas bufantes, o outro é seco, econômico, tem apenas uma aplicação de bordado de metal. Nas duas fotografias de Tarsila do Amaral com esses trajes, a artista está de cabelos presos, brincos longos, sem chapéu. A altura da saia é uma diferença fundamental entre os dois trajes, sendo o vestido usado no Rio de Janeiro bem mais curto. Mais do que demonstrar a confiança adquirida de Tarsila, o comprimento da saia revela a norma da moda feminina do período, já que na imagem podemos ver como muitas senhoras expõem suas pernas, deixando os joelhos cobertos.

  1. Considerações finais

Em 1925, no livro Pau-Brasil, com capa e ilustrações de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade publica, na seção “Postes da Light”, o poema “atelier”, que começa com o verso muitas vezes citado “Caipirinha vestida por Poiret”:

Caipirinha vestida por Poiret

A preguiça paulista reside nos teus olhos

Que não viram Paris nem Piccadilly

Nem as exclamações dos homens

Em Sevilha

À tua passagem entre brincos

Locomotivas e bichos nacionais

Geometrizam as atmosferas nítidas

Congonhas descora sob o pálio

Das procissões de Minas

A verdura no azul klaxon

Cortada

Sobre a poeira vermelha

Arranha-céus

Fordes

Viadutos

Um cheiro de café

No silêncio emoldurado (ANDRADE, 2017, pp. 76-77)

O poema é anterior à criação do traje de Paul Poiret e à escolha de Tarsila pelo “Écossais” para o vernissage de 1926 na Galeria Percier. É comum referir-se à moda quando se fala sobre a aparência – o porte, o olhar, as roupas, o corpo, os brincos – de Tarsila do Amaral. Largamente explorado pela crítica como uma síntese da figura da artista, esse verso de Oswald reúne tensões que atravessam a história do nosso modernismo, tradição/modernidade, rural/urbano, nacionalismo/cosmopolitismo, identidade nacional/superação das influências estrangeiras.

A escolha do traje “Écossais” para o vernissage de sua primeira exposição individual, em Paris, de certo modo materializa o verso de Oswald de Andrade. Principalmente por causa do tecido xadrez, o écossais que, como vimos, remete a um signo de identidade de grupo. No Brasil, o xadrez está ligado à cultura caipira, de que Tarsila do Amaral descende. Lembremos, por exemplo, da obra O violeiro, de Almeida Júnior, que pertenceu a Tarsila, presente estimado de seu pai, e hoje está na Pinacoteca de São Paulo. A cultura caipira, que em sua raiz é atravessada pelo idioma, técnicas de lavoura, caça, pesca e colheita dos índios, está intimamente ligada aos desdobramentos das empreitadas bandeirantes. Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro, a identifica como uma das “variantes principais da cultura brasileira tradicional” (RIBEIRO, 1996, p. 272). A cultura caipira foi “constituída, primeiro, através das atividades de preia de índios para a venda, depois, da mineração de ouro e diamantes e, mais tarde, com as grandes fazendas de café e a industrialização” (RIBEIRO, 1996, p. 272).

Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade jogaram com os signos da moda parisiense para construir uma imagem da artista que interessava ao ambiente e ao mercado de arte francês naquele momento. Em contrapartida, o signo a ser ressaltado no Brasil era o da modernidade, e a escolha por um traje visualmente mais sóbrio certamente não foi irrefletida.

Em carta escrita de Paris à sua mãe, datada de 19 de abril de 1923,[13] Tarsila mostra que estava consciente da tendência moderna de valorização daquilo que era considerado pelos franceses como exótico. Lamentando a saudade que sentia dos pais e do ambiente familiar, Tarsila anuncia seu novo direcionamento artístico e agradece sua infância na fazenda, que lhe forneceu as reminiscências que agora seriam capitalizadas na realização de seu projeto de se firmar como artista, brasileira e moderna. Termino com suas palavras. “Minha mãe adorada”, diz Tarsila,

Lembrei-me da senhora o dia todo. Que bom se pudesse abraçá-la! As saudades que tenho são tão grandes como na primeira separação. Penso vagamente na senhora e em papai para não chorar. Às vezes penso no destino de viver longe dos meus. Que fazer? Não devo desanimar na minha carreira artística iniciada. Só agora é que estou estudando no verdadeiro caminho que não tinha achado na estada anterior na Europa. Não penso já em exposição. Os artistas de nome aqui têm mais de quarenta anos. Tenho pouquíssimo estudo e se já consegui alguma coisa devo-o à inteligência que Deus me deu. Agora, com as lições do Lhote, o meu espírito vai penetrando um novo mundo de estética ignorada. Tive sempre o bom senso de não repelir o que não compreendia. Uma palavra de um bom professor economiza-nos alguns anos de trabalho. Estou, em relação à música, literatura e teatro moderno, à la page,[14] como aqui se diz, procurando desenvolver os meus conhecimentos num equilíbrio integral, necessário à minha carreira artística. Voltar o meu entusiasmo dos tempos de colégio, o afã de lutar e vencer para ser o justo orgulho de meus pais. Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora da minha terra. Como agradeço por ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com bonecas de mato, como no último quadro que estou pitando. Não pensem que essa tendência brasileira na arte é mal vista aqui. Pelo contrário. O que se quer aqui é que cada um traga contribuição do seu próprio país. Assim se explicam o sucesso dos bailados russos, das gravuras japonesas e da música negra. Paris está de farto de arte parisiense.


Referências

AGUILAR, Gonzalo; CÁMARA, Mario. A máquina performática: a literatura no campo experimental. Tradução Gênese Andrade. 1ª edição. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. (Coleção Entrecríticas)

AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. 4ª edição. São Paulo: Editora 34; Edusp, 2010.

ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

BARTHES, Roland. Sistema da moda. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

CHATAIGNIER, Gilda. Fio a fio: tecidos, moda e linguagem. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2006.

GUILLEMARD, Colette. Les mots du costume. Paris: Belin, 1995. (Collection Le Français Retrouvé.)

GOTLIB, Nádia Battella. Tarsila do Amaral, a modernista. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

MICELI, Sergio. Bonita sinhá cubista. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 out. 1997. Jornal de resenhas, pp. 1-2.

______. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

PARA TODOS. Rio de Janeiro, ano 8, n. 401, 21 ago. 1926, p. 42.

PARA TODOS. Rio de Janeiro, ano 11, n. 554, 27 jul. 1929, p. 14.

REMAURY, Bruno; KAMITSIS, Lydia. Dictionnaire international de la mode. Paris: Editions du Regard, 2004.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª edição. 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

RIBEIRO, Leo Gilson. O que seria aquela coisa? Entrevista: Tarsila do Amaral. Veja, 23 fev. 1972.

VOLPI, Maria Cristina. As roupas pelo avesso: cultura material e história social do vestuário. In: 9º Colóquio de Moda, 2013, Fortaleza. Anais eletrônicos… Universidade Federal do Ceará, 2013.

WILSON, Elizabeth. Enfeitada de sonhos: moda e modernidade. Tradução Maria João Freire. Lisboa: Edições 70, 1989.

[1]Figurinista, editora e professora de história e teoria do vestuário e da moda, é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/EBA/UFRJ). Criou, em 2019, a editora Dominó, que só publica livros sobre vestuário e moda. Este artigo é parte da tese O guarda-roupa modernista: os trajes de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, cuja orientação é da professora doutora Maria Cristina Volpi. Bolsista Capes, entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019 participou do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, no Institut d’Histoire du Temps Présent, em Paris, supervisionada pela pesquisadora Sophie Kurkdjian. Contato: carolinacasarin7@gmail.com.

[2] Fotografia guardada no Arquivo IEB-USP, Fundo Aracy Abreu Amaral, código de referência AAA-TA-FRT-045. Foi publicada em AMARAL, 2010, p. 371.

[3] Consta uma reprodução da fotografia do título de eleitor de Tarsila em AMARAL, 2010, p. 384.

[4] O Conseil des Prud’hommes é responsável pelo depósito legal dos modelos da alta-costura francesa. De modo a garantir a propriedade intelectual de suas criações, as casas de alta-costura efetuavam os dépôts des modèles, que podem ser consultados nos Arquivos de Paris sob a forma de protótipos, croquis, desenhos e fotografias.

[5] No original: “Tissu à carreaux multicolores, exécuté en armure toile ou sergé qui se fabrique dans toutes les matières. Le même raccord de couleurs sera employé en chaîne et en trame. Le terme provient des clans écossais, groupes de codescendance qui, afin de se reconnaître, ont chacun leur propre tartan, ou motif d’écossais, formé d’un carreau tissé aux coloris et aux lignes spécifiques. Le tartan fonctionne ainsi comme une sorte de signe identitaire du clan, permettant de distinguer les individus”. Minha tradução.

[6]On dit que la mode des tissus écossais s’imposa en France sous l’influence des romans de Walter Scott” (GUILLEMARD , 1995, p. 315). Minha tradução.

[7] “Tafetá: tem duas nomeações, a primeira se refere à armação ou ligamento, que é o mais simples depois do tipo básico chamado de tela: o fio da trama cruza-se com o do urdume, com um fio por cima e outro por baixo, sucessivamente, o que provoca um efeito encorpado. A outra nomenclatura refere-se ao tecido que tem esta armação, mas com a trama feita com fios finíssimos. A matéria-prima original é seda – criando peças de alta-costura” (CHATAIGNIER, 2006, p. 157).

[8] “Nomenclatura dada ao desenho fantasia que tem como base pequenos losangos que lembram os favos de mel. O efeito é conseguido por meio de maquineta, que altera os volumes do urdume e da trama durante a tecelagem” (CHATAIGNIER, 2006, p. 139).

[9] Utilizei o site de conversão monetária <https://www.insee.fr/fr/information/2417794> e depois multipliquei pela cotação 1 euro igual a 4,64 reais. Consultado em 19 de novembro de 2019.

[10] No original: “Satin dress trimmed with applied gilt braid and part-lined with silk chiffon”. Minha tradução.

[11] Os grifos são dos autores.

[12] Artigo “Bonita sinhá cubista”, publicado em outubro de 1997 no caderno Jornal de Resenhas da Folha de São Paulo, por ocasião da exposição Tarsila anos 20, com curadoria de Sônia Salzstein. Consultado em Arquivo IEB-USP, Coleção Tarsila do Amaral, código de referência TA-P11-134.

[13] Documento consultado no Arquivo IEB-USP, Fundo Aracy Abreu Amaral, código AAA-TA-CT1-010.

[14] Os grifos são de Tarsila do Amaral. À la page significa estar a par das últimas novidades.