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Pela amefricanização do feminismo [Português]

Por: Bruna Stamato*

Traducción: Martina Altalef

Imagen: Todas as fotos que acompanham a nota pertencem à amostra «ReVeladas» da artista Maryury Diaz **, que é exposta no Centro Cultural San Martín.

Em abril de 2018 Bruna Stamato participou da presentação da revista Africanía com este trajeto a través de teorias e práticas afrofeministas onde trança as vozes de Angela Davis, Grada Kilomba, Léila González, Djamila Ribeiro, bell hooks e outras, para se concentrar nos contextos brasileiro e argentino. Exibe também a ação de TeMA e defende a aliança de ativismo e teoria.


Na sua mais recente visita no Brasil, em 2017, a filósofa estadunidense Angela Davis ̶ uma das principais pensadoras do feminismo negro, marxista, ativista pelos direitos humanos, ex integrante do partido Panteras Negras ̶ propus uma afirmação que, embora não seja nova, impactou profundamente na minha cabeça de ativista em constante formação: “quando uma mulher negra se move, toda a estrutura da sociedade se move com ela”[1]. Usarei as expressões “negra” e “afrodescendente” neste texto como sinônimos e como forma de resignificação de uma expressão que, no contexto argentino, tem uma conotação negativa. As palavras, ainda que carregadas de ideologia, também podem ser subvertidas, resignificadas, reapropriadas. Quando as mulheres negras saem desses lugares que são impostos a elas por sociedades racistas e patriarcais, como é nosso caso na América Latina, conseguem uma atuação como agentes de mudança social. Penso, por exemplo, como o aceso à educação muitas vezes possibilita tanto uma inserção diferente no mercado laboral, quanto a possibilidade de desenvolver diversas ferramentas para pensar criticamente sobre o mundo e o impacto do racismo, do machismo e da desigualdade social  ̶ entre outros fatores que nos mantém em posição de vulnerabilidade social e subalternidade ̶ em nossas vidas. Ao questionar a sociedade e propor outros modos de ver o mundo, as mulheres estamos desconstruindo essas estruturas engessadas e tecendo redes para que mudanças mais profundas impactem nas vidas de todas nós, mulheres racializadas, que já não aceitamos a exclusão imposta porque levamos as marcas corporais do que se construiu como “outredade”. Isso faz parte de um processo de empoderamento que, além de ser individual (o que, com certeza, é importante, mas não suficiente), pode gerar uma real transformação da sociedade, acorde com a proposta de Joice Berth[2], quem sugere o empoderamento como ferramenta de luta pela emancipação de mulheres negras.

Refletindo sobre os modos como estamos movendo estruturas em nossas sociedades, e penso na Argentina especificamente, considero as ações de grupos de ativistas com perspectivas de gênero bem definidas no marco do movimento afrodescendente, como o caso da coletiva TeMa – Tertulia de Mujeres Afrolatinoamericanas, e os impactos das suas ações. A própria conformação da coletiva aporta diversas características ao movimento afro local e ao movimento feminista hegemônico. De um lado, TeMA é uma agrupação formada somente por mulheres, afrodescendentes, todas profissionais que tiveram aceso a estudos formais universitários e a possibilidade de cimentar trajetórias acadêmicas. Ao destacar a formação procuramos evidenciar a possibilidade do avanço social que tiveram essas mulheres afroargentinas e afrolatinoamericanas: muitas delas pertencem à primeira ou segunda geração da família que teve a oportunidade de ocupar espaços universitários, ainda hoje marcadamente elitistas e pouco diversos em termos étnicos e culturais. De outro lado, a existência de um grupo de mulheres negras feministas, que se dedicam tanto ao ativismo quando a pensar-se como mulheres negras no mundo, permite o aporte de novas perspectivas e a ampliação das demandas do movimento de mulheres, embora esses aportes não sejam realizados sem tensões no marco da hegemonia, em que outras vozes, constituídas por minorias em termos de representação, ainda não são completamente habilitadas para ecoar. Utilizar a perspectiva interseccional ̶ noção desenvolvida no marco do movimento de mulheres negras ̶  segundo a qual as variantes de raça, classe, gênero, orientação sexual e outras impactam de diferentes maneiras na vida das mulheres, é fundamental para o feminismo negro.

A coletiva TeMA surge da necessidade de reunir-nos a outras mulheres para compartilhar saberes e experiências sobre os significados de ser mulher afrodescendente em uma sociedade que invisibiliza suas raízes afro. Além disso, nasce da necessidade de gerar um espaço que possibilite uma recuperação dos aportes da negritude na construção de correntes de pensamento e ser as protagonistas de uma produção própria de conhecimento[3]. Por ser, também, um grupo de pesquisa e estudos, amparadas no uso de ferramentas teóricas proporcionadas pelos feminismos negros, continuamos uma das características principais do movimento de mulheres negras: aliar ativismo e teoria.

Constituída como um espaço multidisciplinar e interdisciplinar, a coletiva encontra mulheres de formações em campos tão diversos como a educação popular, a psicologia, o direito, a sociologia, a comunicação social, a história e as artes visuais. Nomear-nos a nós mesmas como profissionais além de ativistas e militantes, também faz parte da construção da nossa identidade e da desconstrução de estereótipos que são normalmente vinculados às mulheres negras. Nossa identidade é fragmentada em si e ainda submetida à definição que outros fazem de nós. Em uma sociedade que exerce cotidianamente distintos tipos de violência contra os corpos racializados, especialmente corpos de mulheres, em sociedades que insistem na deshumanização das mulheres afrodescendentes, nossa definição é também um ato político. Funciona como uma estratégia de enfrentamento de uma visão colonial de negação das subjetividades de mulheres negras, como aponta a socióloga estadunidense Patricia Hill Collins[4].

Em nossas sociedades, onde o racismo e o sexismo são suportes de um sistema de dominação, as mulheres negras somos constituídas como “o outro do outro”. Para Grada Kilomba, pesquisadora portuguesa de origem angolana, por ser a antítese da branquitude e da masculinidade, é difícil que as mulheres negras sejam vistas como sujeitos. A óptica tanto de homens brancos e negros, quanto de mulheres brancas confina às mulheres negras a um lugar de subalternidade que seria muito difícil superar. E é precisamente essa autodefinição o que permite ultrapassar esse lugar marginalizado. Reapropriar-nos dessa marginalidade nos possibilita a sua utilização como força criativa para o desenvolvimento de outras teorias que sejam mais plurais.

Mar Díaz

 A lógica da dominação de sociedades da América Latina opera para “domesticar” as comunidades afrodescendentes, apagando essa coletiva e as suas identidades, culturas, origens étnico-raciais. É uma dinâmica que mantém aos e às afrodescendentes em um lugar predeterminado socialmente. Ao falar de termos como “domesticação” e “lugar do negro”, faço referência à socióloga brasileira Léila Gonzalez, destacada intelectual afrodescendente e ativista feminista negra. Ela reflete sobre questões como o racismo estrutural da sociedade brasileira, o mito da democracia racial e os impactos disso na vida e na comunidade afrodescendente graças ao uso dessas categorias. Para falar sobre racismo e sexismo, Léila Gonzalez reconstrói como a sociedade e a academia, que é o que procuro sublinhar aqui, por muitos anos têm negado a experiência de afrodescendentes no Brasil. Essa negação tem contribuído para manter o status de objeto desses sujeitos. Léila, em sua abordagem, trabalha uma divisão racial do espaço e, fazendo uso da teoria do “lugar natural”, adapta a realidade brasileira e reflete sobre aqueles que seriam os “lugares naturais” dos negros e dos brancos no país: os afrodescendentes seguindo o rastro de seus antepassados escravizados continuam sendo desestimados e menosprezados, enquanto os eurodescendentes atuam como sujeitos de ação política e de inserção social privilegiada[5].

A socióloga dirige seus estudos às especificidades da realidade socio-histórico-cultural brasileira, mas podemos pensar como algumas dessas noções servem para analisar outras formações sociais. Podemos nos perguntar, por exemplo, qual seria esse “lugar natural” para as mulheres afrodescendentes na Argentina, quais espaços estão habilitados para elas e quais, não. A academia, a mídia, os espaços hegemônicos de decisão política são ainda inacessíveis para nós como mulheres produtoras de saber e de enunciação.

É importante pensar também nos silêncios impostos e qual é nosso “lugar de fala, de enunciação” como mulheres negras. Me aproprio então da noção de “lugar de fala” acunhada por Djamila Ribeiro[6], jovem intelectual afrobrasileira, que recentemente tem se pensado muito no Brasil. Este lugar de enunciação nos convoca para refletir sobre por que não existem outras vozes em determinados espaços, quem são os sujeitos e sujeitas autorizadxs para falar, quais são xs que sempre foram silenciadxs. A população afro foi historicamente falada por outros e os saberes produzidos por esse grupo, que é historicamente subalternizado, muitas vezes não são considerados. Djamila Ribeiro propõe a necessidade de uma pluralidades de vozes na produção de conhecimento e estimula a quebra do silêncio como forma de despedaçar hierarquias que são violentas.

Para Patricia Hill Collins é importante que as mulheres negras possam fazer uso criativo do lugar da marginalidade que ocupam na sociedade. Este uso tem como objetivo desenvolver teorias e pensamentos que possam gerar diferentes miradas e perspectivas. Algo similar propõe Bell Hooks[7] quando afirma que a experiência vivida pelas mulheres negras e nossa consciência do mundo, que é marginalizada, pode ser um ponto de vantagem para criticar a hegemonia racista, classista e sexista e imaginar um movimento contra-hegemônico.

 

Feminismos negros na Argentina

            Como é a relação das mulheres afrodescendentes e o movimento de mulheres na Argentina?  Ao longo dos últimos anos, as comunidades afroargentinas e afrodescendentes de origem migrante têm amplificado cada vez mais sua luta por direitos, reconhecimento e contra a invisibilização e estigmatização. Muitas dessas lutas são desenvolvidas por associações e agrupações cujas líderes são, com freqüência, mulheres afrodescendentes. Hoje esta se consolidando um movimento de mulheres afrodescendentes aqui, formado por mulheres que pensam sobre sua condição de gênero e constroem identidades e narrativas sobre si mesmas. Os antecedentes desse movimento estão fortemente vinculados com a atuação dessas líderes.

Ao pensar os caminhos para a consolidação desse movimento afrofeminista, temos alguns elementos contextuais importantes. Um deles é a realização do primeiro “taller” de mulheres afrodescendentes no 31º Encuentro Nacional de Mujeres, em Rosario, em 2016. No entanto, segundo a educadora popular e referente feminista afroargentina Gladys Flores, foi no ano 2015 quando a semente foi plantada. Aquele ano, ela completou trinta anos de participação no ENM e, para dar conta de uma reivindicação que não era nova, as coordenadoras do evento organizaram uma mesa na qual se debateram, de maneira breve e com a participação de poucas mulheres, questões de mulheres negras. De acordo com Gladys, foi isso o que possibilitou que no ano seguinte se realizara o primeiro “taller” próprio e específico.

O “taller” é um espaço autogerenciado, horizontal, em que não há hierarquias de saberes. Todas as mulheres que participam têm garantida a validez de suas palavras ao compartilhar suas experiências e se fazer ouvir pelas companheiras. Em um contexto de escassez de opções para encontros e discussões sobre as problemáticas específicas com as que as mulheres afrodescendentes lidam  ̶ racismo, hipersexualização, estereotipação, falta de oportunidades laborais e de acesso adequado ao sistema de saúde, pobreza estrutural e violência machista, entre muitos outros ̶  esta atividade se configura como importante ponto de encontro e debate. De acordo com a línha do ENM, as mulheres partem de experiências pessoais para se encontrar coletivamente, aprender das outras, continuar crescendo juntas. Os “talleres” permitem descobrir que não estamos sós, que é possível se encontrar e organizar para transformar a realidade.

No final de cada encontro se produzem as conclusões do debate que abarca uma ou duas jornadas. Neste documento, se manifestam aspectos da construção da identidade afro como algo político, o corpo como primeiro território e a necessidade de construção de outros saberes, não eurocéntricos, que contemplem outras cosmovisões. Também foi reivindicada a implementação de políticas públicas dirigidas especificamente à comunidade afrodescendente da Argentina e a necessidade de amplificação da representação das mulheres afrodescendentes em organismos dedicados a questões de gênero. Quanto às propostas, ou seja, os planos para desenvolver depois do ENM, ressaltamos aquelas que sublinham o incremento da presencia das mulheres afrodescendentes na mídia, a necessidade do acesso à educação e formação e as problemáticas relativas à saúde.

A luta pela ampliação de direitos se insere no marco da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, cujo tema é “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. Segundo as recomendações das Nações Unidas, “os estados deveriam adotar medidas concretas e práticas mediante a aprovação e aplicação efetiva de marcos jurídicos nacionais e internacionais e de políticas e programas de luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as formas conexas de intolerância as que se enfrentam os afrodescendentes, tendo em consideração a situação particular de mulheres, crianças e homens jovens”[8].

Mar Díaz

Organizadas e unidas na militância, as mulheres afrodescendentes se fortificam e se fazem presentes ocupando cada vez mais espaços na sociedade, espaços que também nos pertencem como cidadãs, produtoras de conhecimento e cultura e como sujeitas de nossas histórias. Através dos ativismos nos visibilizamos como atoras políticas, nos desligamos do lugar de subalternidade que a sociedade ainda nos impõe e desafiamos os espaços e mecanismos tradicionais de participação. Quando desenvolvemos nossa afroconsciência, nossa consciência racial, assumimos, também, uma mais do que precisa posição de ativistas.

 Para finalizar, volto a Léila Gonzalez[9]. Ela propõe a “amefricanização” do feminismo, a descolonização do saber e da produção de conhecimento. Ao reivindicar um feminismo afrolatinoamericano, Gonzalez ressalta a importância dos movimentos étnicos como forças sociais para gerar novas discussões sobre as estruturas tradicionais, para reconstruir identidades e desmascarar as estruturas de dominação. Como coletiva formada por mulheres afrolatinoamericanas, cujas miradas e experiências funcionam como impulsoras da produção de conhecimento sobre elas mesmas e da construção de redes e alianças, TeMA contribui para que as estruturas da sociedade podam se mover e produzir as mudanças que tanto precisamos para fazer, em sintonia com a procura de Judith Butler, vidas mais vivíveis[10].


* Formada em História (UNIRIO) e Comunicação Social (FACHA), fez posgraduação em Fotografia – Imagem, Memória e Comunicação na Universidade Cándido Mendes, tem cursado uma especialização em História do Rio de Janeiro na Universidade Federal Fluminense e atualmente é aluna da Maestría en Estudios y Políticas de Género da Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF). Militante feminista negra, faz parte da colectiva TeMA – Tertulia de Mujeres Afrolatinoamericanas.

** Maryury Diaz é formada em artes plásticas e fotógrafa afrodescendente colombiana. Atualmente mora na Argentina e se dedicou a capturar com a lente os rostos dos Negritudes na América Latina. Sua exposição «ReVeladas» é exibida no Centro Cultural San Martín.

[1] Alves, A. Entrevista a Angela Davis: “Cuando la mujer negra se mueve, toda la estructura de la sociedad se mueve con ella”. Publicada el 29 de julio de 2017 en  El País. Disponível online em https://elpais.com/internacional/2017/07/27/actualidad/1501114503_610956.html

[2] Berth, J. (2018). O que é empoderamento? Belo Horizonte, MG: Letramento: Justificando.

[3] TeMa, através de seu manifesto, estabelece as bases do seu posicionamento político frente ao mundo. Disponível em: https://www.facebook.com/pg/tertuliademujeresafrolatinoamericanas.

[4] Hill Collins, P. (2012). “Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro”. En Jabardo, M. (Ed.), Feminismos negros, una antología (pp. 99-134). Madrid, España: Traficantes de Sueños.

[5] Gonzalez, L. y Hasenbalg, C. (1982). Lugar de negro. Rio de Janeiro, Brasil: Editora Marco Zero Limitada.

[6] Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte, MG: Letramento: Justificando.

[7] Hooks, B. (2017). El feminismo es para todo el mundo. Madrid, España: Traficantes de Sueños.

[8] Disponível em:  http://www.un.org/es/events/africandescentdecade/

[9] Gonzalez, L. (s.f.). Por um feminismo Afro-latino-americano. Brasil: Caderno de Formacao Política do Circulo Palmarino n. 1.